terça-feira, 25 de setembro de 2018


25 DE SETEMBRO DE 2018
LUÍS AUGUSTO FISCHER

SE ERA BOA?


Uma das maravilhas de quem lida com história da literatura, como este vosso criado, é encontrar novidades antigas, textos já publicados que impõem uma boa pergunta sobre o modo como as coisas estão descritas, sobre o modo como compreendemos o passado.

Exemplo bacaníssimo: li somente agora, em edição caprichada da Editora 34, o romance Água Funda. A autora é Ruth Guimarães (1920 - 2014), nascida em cidadezinha paulista do Vale do Paraíba, no sítio de seu avô. Trata-se daquela região do café antigo de São Paulo e do Rio, com fazendas tocadas basicamente a mão de obra escrava - Ruth descende dessa sofrida gente. Mudou-se para a capital paulista depois de órfã, ainda jovem, e ali estudou, tornando-se professora.

Saído em 1946, pela editora Globo de Porto Alegre (epa!), no mesmo ano de Sagarana, o primeiro livro de Guimarães Rosa, Água Funda é também uma história do mundo rural, com uma técnica narrativa de grande interesse - tem uma levada que o aproxima do causo, mediante um narrador testemunhal e uma certa linguagem documental. Bom livro.

Mas o que me fisgou assim que abri a primeira página foi a abertura do relato. É assim: "Se era boa? Tão boa como mel de jati. É que a Mãe do Ouro tinha enfeitiçado o homem". O senhor já leu algo parecido?

Claro que já: a abertura do conto Negro Bonifácio, de Simões Lopes Neto, publicado em livro em 1912: "Se o negro era maleva? Cruz! Era um condenado!... Mas taura, isso era também". Quase igual: uma pergunta respondida com outra pergunta, contendo um juízo sobre o caráter do personagem, colocando leitor no meio de uma conversa já em curso.

Não quero sugerir que Ruth imitou Simões Lopes Neto, a quem talvez nem conhecesse (o pelotense tinha tido apenas duas edições até então, a primeira de 1912, em Pelotas, e a segunda, já pela Globo da Capital, em 1926). Mas não é impossível que o conhecesse, por outro lado. De resto, a lenda da Mãe do Ouro, que está no centro do romance de Ruth Guimarães, é abordada nas Lendas do Sul, do mesmo Simões Lopes, que figuram na edição de 1926.

Se ela não conhecia essa fonte, é certo que podemos enxergar nessa coincidência toda uma afinidade cultural entre as duas figuras, os dois Estados, as duas formas de interior do Brasil.

LUÍS AUGUSTO FISCHER