quarta-feira, 26 de setembro de 2018



26 DE SETEMBRO DE 2018
PEDRO GONZAGA

ARMISTÍCIOS

Para além do penhasco da janela, o tráfego é um rio por demais sonoro e caudaloso, impossível de atravessar sem uns tantos mergulhos, e mesmo depois de escalar a montanha de andares até o apartamento, ainda há muita água represada atrás dos tímpanos. Vez ou outra, mais ao longe, pipocam foguetes-talvez-tiros entre buzinas que grasnam. 

A guerra nunca acaba, há apenas a retirada noturna, o recuo para as guarnições, o heroísmo coletivo e anônimo da vida na cidade enorme. Mas se vivos, há que valorizar cada recompensa, cada instante a salvo, e eu te abraço com o que me restou de força, ciente (nem sempre) de que aqui, à certeza das mãos, está uma ideia eterna feito pessoa, de que aqui, de todas as curvas e extensões possíveis da matéria, descartados todos os croquis contraditórios, ergueu-se teu corpo único. 

E se entre meus braços és quem és, não sem algum espanto considero que tuas pernas bem podiam ter sido árvores, teus cabelos algas marinhas e ferruginosas, teus olhos os mesmos olhos grandes de um lince. Mas porque hoje falei demais, nada digo sobre os ossos de tua bacia serem duas falésias, erguidas às margens de uma noturna praia. 

Porque escrevi coisas demais em discussões mofadas, agora apenas me calo. Porque mais dois amigos se afastaram por minha indiferença a suas denúncias inteligentes ao cenário político, apenas te abraço e nos encontramos tal um par de dançarinos no meio da sala. Seis décadas atrás, outros sobreviventes, bailaríamos um bolero, ao som dos bongôs e do inglês errado de Nat King Cole.

Ao nosso silêncio, o tráfego segue lá fora com seu rumor de metal líquido, alguém grita a existência de uma faixa de pedestres nunca respeitada, provável depois grite o mesmo nas redes em letras garrafais. Quero reivindicar nossa grande vitória, mas lembro de Ulisses e da dificuldade dos raros peões que voltavam do oriente para casa, dos tantos seres massacrados nas guerras, dos tantos refugiados, sem a sorte de ter sequer um lar para retornar. 

Mas seria hipocrisia não dizer que, apesar de tudo, amamos egoisticamente, e então celebro, celebramos, até sermos outra vez os altruístas, capazes de desejar um pouco de conforto a nossos contemporâneos em seus abrigos modernos, que possam ter vinhos e discos e livros e séries e banhos quentes, ou quaisquer outras coisas que os reponham mais doces num mundo sempre indiferente e turbulento e agreste.

PEDRO GONZAGA