terça-feira, 28 de janeiro de 2020



28 DE JANEIRO DE 2020
CARPINEJAR

Leiteira de rosas

Jamais tinha recebido rosas, correspondia à primeira vez que uma mulher me mandava flores, fazia o joguinho de suspense de pedir o endereço sem que eu percebesse a intenção, perguntava onde estaria em determinada hora como quem não quer nada e mantinha as conversas por WhatsApp com uma normalidade impensável para alguma surpresa.

Foi uma quebra de gênero já no começo da relação. Beatriz me cortejava antes de qualquer decisão viril.

Acostumado a ser o protagonista, enfrentava a inédita vergonha de ser o presenteado com uma dúzia de rosas vermelhas incandescentes. Fiquei encabulado, pasmo, sem jeito. Corri para o cartão, com a convicção de definir o remetente e ansioso pelo buquê de palavras. Sempre que antevemos quem nos enviou, já é paixão. Acertar o autor do agrado significa cumplicidade firmada e expectativas correspondidas. É que a pessoa mora em nossos pensamentos antes mesmo de morar conosco.

A dedicatória destacava que o namoro representava uma democracia. Não existiam papéis definidos, éramos complementares.

Eu cumpri o ritual. Cheirei longamente o aroma, como se eu sofresse uma crise de asma naquele momento. Devo ter chorado, as lágrimas são as pétalas dos olhos. Devo ter postado imagem nas redes sociais agradecendo a oferta e marcando-a na foto. Devo ter explicado aos amigos o que vinha acontecendo. Fiel ao protocolo, liguei para ela entre suspiros e interjeições. Óbvio que disse que não precisava, mesmo descobrindo que eu precisava muito disso há muito tempo.

Todo homem merecia passar por essa experiência de imensa vulnerabilidade. Embalei o feixe de galhos como um bebê, com a inexperiência de um tio até pegar o jeito de pai.

Corri a buscar um vaso com água capaz de acolher a braçada de um jardim. Vi que não contava com nenhuma jarra bonita, e improvisei a minha responsabilidade de cuidador em uma leiteira.

Eu jurava que as rosas envelheciam juntas, parelhas, quando um botão abria, o outro vinha na sequência, mas não, desvendei que cada rosa tinha a sua particular maturidade. Não floresciam unidas. Cada rosa era um dia diferente de nosso relacionamento, disputando o espaço com movimentos próprios. Por semanas, pude discernir a dinâmica de vários nascimentos e temperamentos, manhã por manhã uma rosa se abria para mim. E aplaudia com as pálpebras o milagre da sobrevivência.

Havia rosas que gargalhavam, irrompendo da sua concha subitamente. Havia rosas tímidas, que jamais desfaziam o novelo.

Desfrutava da ciência do carinho como nunca: alisava o poder dos espinhos, cortava o caule mais apodrecido, ouvia o baque seco da tesoura como uma batida do coração ou de uma porta.

Quando as flores murcharam, recolhi as sobras em uma caixinha de madeira.

Aquela bandeja de pétalas que arremessei para cima de nossas cabeças durante o casamento partiram do primeiro buquê que Beatriz me deu. As rosas, então, voaram.

CARPINEJAR

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