quarta-feira, 22 de janeiro de 2020



22 DE JANEIRO DE 2020
DAVID COIMBRA

Até onde pode ir o jornalista?

Havia sempre um desagradável problema a resolver quando a gente viajava a trabalho, nos anos 1980: o uso do banheiro. Não pense em nada escatológico, a dificuldade existia porque os fotógrafos precisavam transformar os banheiros dos quartos de hotel em laboratório. Eles vedavam as janelas para fazer um quarto escuro de revelação e espalhavam bacias com produtos químicos pela pia, sobre o vaso, no chão. Reveladas as fotos, penduravam-nas em um varal para secar e, depois, tinham de mandá-las para a redação por radiofoto ou telefoto, num processo que durava cerca de meia hora cada uma.

Enviar o texto também demandava algumas complexidades: tínhamos de achar um aparelho de telex para nos comunicarmos com a redação. Você, é claro, não sabe o que é telex. Era um monstrengo maior do que um fogão de seis bocas, que mandava os textos por linha telefônica. Se a viagem era internacional, a coisa ficava um pouco mais complicada: o repórter devia carregar a sua própria máquina de escrever a tiracolo, porque os teclados europeus e americanos são diferentes. Percorri metade da Itália levando, debaixo do braço, minha Olivetti Lettera 35, de metal, cinzinha, uma lindeza, mas mais pesada do que uma impressora de papel A4.

Vivíamos em outro mundo, e não apenas em aspectos tecnológicos. Até o começo dos anos 1990, raros eram os jornalistas que tinham um único emprego no Rio Grande do Sul. Em geral, os colegas trabalhavam em um veículo de comunicação e mais uma ou duas assessorias de imprensa. Conheci uns que chegaram a ter cinco empregos. Isso era normal, as empresas de comunicação até estimulavam seus profissionais a firmar contratos paralelos, para que ganhassem mais.

Muitas vezes, o jornalista nem sequer aparecia no local de trabalho da assessoria. Ele fazia o que tinha de fazer na redação do jornal ou da rádio, e pronto, só ia lá para receber o salário. Com a intenção de facilitar os dois trabalhos, o assessor de um hospital era repórter da editoria de geral do jornal e o assessor de um partido era repórter de política. Tudo muito conveniente, ninguém falava em "funcionário fantasma" ou conflito de interesses.

Eu jamais trabalhei em assessorias, não porque tivesse mais escrúpulos do que os colegas, e sim por questões práticas, por querer me dedicar integralmente à função de repórter. Essa situação mudou no início dos anos 1990, quando o Augusto Nunes assumiu a direção de Zero Hora e promoveu o Marcelo Rech a editor-chefe. O Marcelo passou a fazer exigências éticas novas, e o jornalismo gaúcho nunca mais foi o mesmo.

A internet facilitou demais o trabalho do jornalista. Hoje, você pode fazer uma matéria completa, para todos os veículos, manejando nada mais do que um celular. Em compensação, há novos dramas éticos, e o episódio dos hackers da Intercept os escancara. Um hacker habilidoso é capaz de acessar informações sigilosas de juízes, empresários, promotores, artistas, do presidente da República. São informações valiosas, que podem destruir empresas e reputações, atirar gente na cadeia, causar escândalos. Se elas forem roubadas, poderão ser publicadas pelos veículos de comunicação? Ao publicar o produto de invasão de privacidade, os veículos não estão estimulando a invasão de privacidade? Não estão criando um mercado negro de informações? Até onde o jornalista pode ir?

Sou jornalista há quase 40 anos e não tenho respostas absolutas e acabadas para dar a cada uma dessas perguntas. Vou dar uma olhada no tuíter. O tuíter certamente tem.

DAVID COIMBRA

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