sábado, 11 de novembro de 2017


11 DE NOVEMBRO DE 2017
LYA LUFT

O menino e sua mãe



No dia 2 de novembro, Finados, a morte - que tudo comanda - levou um de meus filhos. André, um gigante de corpo e alma, belíssimo por dentro e por fora, morreu na plenitude da vida, fazendo o que mais amava: surfando nas águas verdes de Florianópolis, onde, embora trabalhando na África, ele e sua mulher residiam. Ainda incapaz de escrever coisas coordenadas, reproduzo aqui, para meus leitores, o trecho da página 67 de meu novo livro, A Casa Inventada, que já está nas livrarias. O menino, então com uns sete anos, era o André.

Um menino e sua mãe voltavam das compras no ônibus quase vazio. Ele segurava no colo o presente cobiçado: um microscópio "de verdade", dado pelo pai, mas a mãe fora com ele comprar. De vez em quando, ele passava a mão no pacote:

- Parece mentira, né, mãe? - olhar sonhador daqueles olhos grandes de um azul indescritível.

- Mãe, que igreja é essa?

- Nossa Senhora Auxiliadora.

- Por que tem tanta Nossa Senhora? Não era só uma?

- É uma, sim, filho, mas ela tem muitos nomes.

- E o Nosso Senhor é São Pedro, né? Marido dela.

- Não, é Jesus. Quem se casou com ela foi São José. São Pedro era amigo de Jesus - a mãe suspirou: não praticar muita religião dava nisso.

- Ah... E por que o José não é o Nosso Senhor, se era casado com Nossa Senhora? - os olhos azuis começavam a deixar a mãe inquieta.

- Acho que é porque Jesus e Nossa Senhora são mais importantes, filho.

- Mas o José não era pai dele?


- Não era de verdade, o pai dele era Deus, José era pai adotivo.

- Então Jesus não nasceu da sementinha do José?

O silêncio no ônibus já meio vazio parecia imenso. O menino falava em voz alta e clara, pra ele era tudo natural, assim ensinavam em casa.

- Não, filho, Deus fez brotar a sementinha direto em Nossa Senhora, foi um milagre.

- Ué, então não foi como nas pessoas? - agora o silêncio podia ser cortado com faca. A mãe se fez de distraída, mas o menino pensava, concentrado.

- Mãe, como é que antigamente as primeiras pessoas sabiam como se fazia pra ter bebê, se ninguém tinha ensinado a elas?

- Ora, filho, essas coisas a natureza ensina.

- Mas a natureza não é pessoa pra ensinar a gente.

- Quer dizer, quando a gente cresce, aprende por si.

- Mãe, olha, nessa placa estava escrito Rua Mozart! Eu acho que ele mora aqui!

- Ele quem?

- O Mozart, mãe. Quem ia ser?

- Não, filho, ele viveu na Europa.

- Ah é? Até achei que era nos Estados Unidos, onde moram pessoas importantes.

Finalmente desembarcaram. Parado na calçada, sol nos cabelos claros, o menino retomou seu ar sonhador ainda segurando o pacote.

- Mãe, como eu tenho um pai bom, né?

E acrescentou depressa:

- Mãe também, claro...

LYA LUFT