quarta-feira, 29 de novembro de 2017


29 DE NOVEMBRO DE 2017
DAVID COIMBRA


O Grêmio tem um jogador que pode levá-lo à vitória hoje

O Próspera tinha um ponteiro-esquerdo japonês. Eu achava isso importante. O Próspera é o segundo clube de Criciúma, formado com base na carbonífera que tinha esse nome e que depois virou CSN. Um time de mineiros, de raízes populares, orgulhosamente pobre, às vezes os jogadores treinavam com a camisa rasgada, às vezes o número de bolas não era suficiente para o trabalho tático do inteligente técnico Acioly Sanchez, mas coragem sempre tinha de sobra.

Nos sábados à tarde, eu ia assistir aos jogos do Próspera junto com meu amigo Ricardo Fabris. Na época, ambos éramos humildes repórteres. Hoje, só eu continuo na humildade. O Ricardo é vice-prefeito da cidade e um dia ainda será governador, anote aí.

Nós nos acomodávamos em um pavilhão coberto que tem no estadinho Mário Balsini e pedíamos cerveja e amendoim e ficávamos olhando o jogo meio distraidamente. Meu interesse nem era tanto o jogo, era mais aquela convivência arrabaldina, amistosa, brejeira, de pessoas que se conhecem e que decidem gastar um pouco do seu tempo fazendo alguma coisa juntas.

Era do que falava ontem: em uma cidade em que as pessoas se encontram, a vida é mais leve.

Então, nós passávamos a tarde de sábado vendo o jogo do Próspera e falando daquele ponta-esquerda japonês. Júlio César, o nome dele, e, vou dizer, não era mau jogador. Tinha alguma velocidade, alguma agressividade e até bom chute, mas nós implicávamos com ele. Por quê? 

Porque era japonês. Puro preconceito, que que tem o cara ser japonês? Estive no Japão, e gostei muito. Os japoneses são educados, gentis e prestativos. A civilização japonesa é o ápice da civilização humana. Nunca alcançaremos aquele nível. Mas, lá em Criciúma, no Estádio Mário Balsini, nós gozávamos do Júlio César só porque ele era japonês.

Um japonês não podia ser ponta-esquerda, simplesmente não podia. Porque a tradição de ponteiros-esquerdos na América Latina apontava para jogadores que estavam distantes da disciplina oriental. Japoneses eram corretos e cumpridores de regras. Ponteiros-esquerdos eram bagunceiros por natureza. 

De Lula, do Inter, por exemplo, dizia-se que incomodava a direção do clube durante a semana e os adversários do time no fim de semana. Ortiz, argentino que jogou no Grêmio, dava um drible de palmo e meio de largura. Foi campeão do mundo em 1978. Recusava-se a marcar Cláudio Duarte nos Gre-Nais.

- Eu sou ponta - indignava-se. - E querem que te marque!

Claudião, malandro, respondia com sua habitual gagueira:

- Nã-não te pre-ocupa. Fi-fica aí, que vou lá, dou uma cruzadinha e já-já volto.

O Flamengo teve um Júlio César também, o Uri Geller, porque entortava os marcadores como o Uri Geller paranormal entortava colheres. No Palmeiras havia Nei, um inferno para os laterais. E o Santos tinha um dos maiores dribladores da história do futebol, Edu. No São Paulo, reluzia Canhoteiro, o Garrincha da esquerda. Depois o São Paulo teve Zé Sérgio, ponta-esquerda que jogava com a bola grudada no pé direito, cortando para dentro e quebrando os quadris dos marcadores. Mas ninguém sofreu mais com um ponta que cortava para dentro do que o Inter sofreu com Joãozinho, do Cruzeiro. Esse ganhou sozinho jogos contra aquele supertime de Falcão, Valdomiro, Figueroa e... Lula.

Os ponteiros-esquerdos são assim, rebeldes, surpreendentes, arrojados. O Grêmio precisa de um deles hoje, na Argentina. E o tem: Éverton.

Éverton é um ponta de verdade, é capaz de jogadas inesperadas e de abrir uma defesa. Éverton não é um japonês. Bote Éverton no time, Renato. Ganhe, com ele, esse jogo. E volte para essa dura Porto Alegre do século 21 com a glória que você experimentou nos anos 80 do século 20.

DAVID COIMBRA