sexta-feira, 21 de agosto de 2020


21 DE AGOSTO DE 2020
EDUARDO BUENO

A égide da ignorância


O Brasil só começou a ser colonizado por Portugal meio século após a arribada de Cabral em Porto Seguro. Foi com a criação do Governo Geral, em março de 1549, que a colônia - até então entregue a náufragos, traficantes e degredados - viu-se incorporada à teia administrativa, jurídica e econômica da Coroa. No reino, viviam-se os tempos sombrios da Contrarreforma, a feroz reação da Igreja Católica à Reforma que Lutero havia desencadeado 30 anos antes. 

Como a Reforma se baseava na difusão maciça do conhecimento, na alfabetização em larga escala e na disseminação da Bíblia (enfim traduzida para o vernáculo, aliás pelo próprio Lutero), a Contrarreforma trilhou o caminho oposto. Por sugestão dos jesuítas - uma espécie de milícia papal -, o rei Dom João III varreu de vez os ventos humanistas que sopravam em Portugal, proibiu o estudo do hebraico e do grego, fechou o Colégio das Artes, prendeu intelectuais e mergulhou o reino no obscurantismo.

Os jesuítas chegaram ao Brasil com Tomé de Sousa, em 1549. Criaram colégios na Bahia, no Rio e em São Paulo. Mas eram escolas para catequizar os indígenas, não para os colonos ou seus filhos. Na visão da Contrarreforma, quanto menos gente soubesse ler, quanto menos livros circulassem, quanto menos inquietação intelectual, tanto melhor. Assim, por três séculos foi proibido imprimir qualquer texto no Brasil; nenhuma instituição de ensino foi criada, não teríamos bibliotecas nem universidades. Tal estado de coisas levou o crítico Wilson Martins a finalizar o primeiro dos sete volumes de sua História da Inteligência Brasileira com a frase: "A inteligência chegou ao Brasil sob a égide da ignorância".

Isso posto, nada mais coerente que, 500 anos depois, o atual ministro da Economia, o dito "posto Ipiranga", tenha decidido taxar livros e os considere "produto de elite". Este país sempre apostou no desconhecimento. E, como se viu, a Igreja Católica também. Até por isso, homem de memória longa e tolerância curta que sou, quero dizer que não esqueci dos inquisidores que queimaram o dramaturgo brasileiro Antônio José da Silva em Lisboa, em 1739 (e condenaram Galileu por dizer que a Terra girava, fizeram o filósofo Giordano Bruno arder nas chamas da intolerância etc., etc.). Foram antecessores dos bispos da CNBB e dos pastores dos evangélicos (enfim unidos) que, nesta semana, tacharam de "crime hediondo" o aborto da menina de 10 anos estuprada pelo tio.

Me pergunto como agirão eles ao saberem que o preço da Bíblia - bem como o de todas as demais obras de ficção - vai subir 20%. Mas não duvido que fiquem felizes.

EDUARDO BUENO

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