sábado, 29 de agosto de 2020


29 DE AGOSTO DE 2020

O PRAZER DAS PALAVRAS


Item


Ganhei da minha mulher um relógio chinês que registra quantos passos eu dei, quantos minutos dormi, quantas vezes meu coração anda batendo por minuto e muito mais. Gosto muito dele, mas sonho com um modelo, no futuro, que possa também computar o número de caracteres que escrevo por dia. Quando isso acontecer, muita gente vai ficar surpresa ao perceber que nunca escreveu tanto em sua vida. Há um discurso apocalíptico - e tolo - de que os ícones e emojis estão aos poucos substituindo a linguagem. Nada mais falso. Uma contagem de quantas vezes acionei cada tecla do celular ou do computador chegará a cifras amazônicas; se impressa, uma cópia de todas as minhas mensagens enviadas por e-mail ou pelas mídias sociais num só dia pode encher facilmente várias folhas de tamanho A4.

Nunca foi tão fácil interagir com outras pessoas, comentar notícias, compartilhar momentos importantes de nossa vida e, principalmente, deixar registrada nossa valiosa opinião sobre tudo (o erudito renascentista Pico della Mirandola, que era capaz de dissertar sobre omni re scibili, "todas as coisas conhecidas", era fichinha perto de qualquer "especialista" de hoje). Por outro lado, nunca ficaram tão expostas as deficiências individuais no manejo do próprio idioma - e, sabendo disso, há por aí muitos envergonhados que procuram escrever o mínimo possível.

Falo nisso porque recebi a primeira consulta pelo áudio do WhatsApp. Georgina S. (não sei como conseguiu o meu número) se desmanchou em desculpas por invadir minha linha privada: "Eu tentei fazer a pergunta por e- mail, mas não tive coragem de enviar para o senhor porque texto parecia cheio de erros. Falando acho que eles não aparecem". Ela estava com a razão: apesar do leve sotaque castelhano, não havia reparo algum na sua fala. Ela começou ganhando pontos comigo por sua gentileza e porque estava lendo Machado de Assis, mais especificamente o Brás Cubas. Ao encontrar a frase "Meu tio cônego morreu nesse intervalo; item, dois primos", chegou a pensar que alguma palavra tinha sido suprimida inadvertidamente, mas como se tratava de uma edição especial - "muito bonita e muito cara", disse ela -, resolveu perguntar.

Não, Georgina, não há nenhuma palavra faltando. Machado de Assis escreve este romance no final do séc. 19, exatamente quando o termo item, como uma sucuri que muda de pele, está abandonando o seu significado antigo para envergar um outro, novinho em folha. Na origem, item é um advérbio latino que significa "também, da mesma forma". Era muito usado em enumerações legais e na redação de testamentos, para relacionar os itens arrolados.

No séc. 18, o padre Manuel Bernardes fala do pitoresco testamento de um burguês desiludido com a família: "E, para acabar meu testamento, escreva Vossa Mercê: Mando aos demônios a minha alma; mando aos demônios a alma de minha mulher; item, mando aos demônios as almas de meus filhos; mando-lhes também a alma de meu confessor". No rol dos bens testados, o termo era usado como forma de evitar repetições: "um baú de marchetaria; item, de madeira de lei; item, de sola com reforços de bronze". Na frase de Machado, é exatamente este o seu significado: os primos também morreram. Ora, por ser usado sempre em enumerações, o termo virou substantivo e passou naturalmente a designar uma unidade que faz parte de um conjunto ou de uma lista.

O próprio Machado, mais ou menos ao mesmo tempo em que publicava seu Brás Cubas, descreve sua reação imaginária ao ler, num jornal mineiro, a composição de uma lista distrital de candidatos: "Rasguei afinal a folha, e perdi os dois itens". Do outro lado do Atlântico, exatamente na mesma época, Eça de Queirós, o outro gigante de nossa língua, faz um inventário dos gastos de uma cocotte: "Um largo envelope atulhado de contas de modistas, algumas pagas, outras sem recibo, interessou profundamente o Vilaça - que percorria os itens, espantado dos preços, das infinitas invenções do luxo". Hoje ninguém estranha quando falamos em itens de vestuário, nos itens de um catálogo, nos itens de viagem; est­e novo significado foi se consolidando e suplantou o anterior, que se tornou uma curiosidade filológica.

Aproveito para reiterar meu convite aos aficionados por Cultura Clássica: não deixem de dar uma passada pelo meu podcast sobre Mitologia Grega em noitesgregas.com.br. Nesta semana, continuo a falar sobre os amores de Afrodite.

CLÁUDIO MORENO

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