FERREIRA
GULLAR
Da fala ao
grunhido
De
que adianta escrever o que escrevo aqui se a televisão continuará a difundir a
fala errada?
DESCONFIO
QUE, depois de desfrutar durante quase toda a vida da fama de rebelde, estou
sendo tido, por certa gente, como conservador e reacionário. Não ligo para isso
e até me divirto, lembrando a célebre frase de Millôr Fernandes, segundo o qual
"todo mundo começa Rimbaud e acaba Olegário Mariano".
Divirto-me
porque sei que a coisa é mais complicada do que parece e, fiel ao que sempre
fui, não aceito nada sem antes pesar e examinar. Hoje é comum ser a favor de
tudo o que, ontem, era contestado. Por exemplo, quando ser de esquerda dava
cadeia, só alguns poucos assumiam essa posição; já agora, quando dá até
emprego, todo mundo se diz de esquerda.
De
minha parte, pouco se me dá se o que afirmo merece essa ou aquela qualificação,
pois o que me importa é se é correto e verdadeiro. Posso estar errado ou certo,
claro, mas não por conveniência. Está, portanto, implícito que não me considero
dono da verdade, que nem sempre tenho razão porque há questões complexas demais
para meu entendimento. Por isso, às vezes, se não concordo, fico em dúvida, a
me perguntar se estou certo ou não.
Cito
um exemplo. Outro dia, ouvi um professor de português afirmar que, em matéria
de idioma, não existe certo nem errado, ou seja, tudo está certo. Tanto faz
dizer "nós vamos" como "nós vai".
Ouço
isso e penso: que sujeito bacana, tão modesto que é capaz de sugerir que seu
saber de nada vale. Mas logo me indago: será que ele pensa isso mesmo ou está
posando de bacana, de avançadinho?
E se
faço essa pergunta é porque me parece incongruente alguém cuja profissão é ensinar
o idioma afirmar que não há erros. Se está certo dizer "dois mais dois é
cinco", então a regra gramatical, que determina a concordância do verbo
com o sujeito, não vale. E, se não vale essa nem nenhuma outra -uma vez que
tudo está certo-, não há por que ensinar a língua.
A
conclusão inevitável é que o professor deveria mudar de profissão porque, se
acredita que as regras não valem, não há o que ensinar.
Mas
esse vale-tudo é só no campo do idioma, não se adota nos demais campos do
conhecimento. Não vejo um professor de medicina afirmando que a tuberculose não
é doença, mas um modo diferente de saúde, e que o melhor para o pulmão é fumar
charutos.
É
verdade que ninguém morre por falar errado, mas, certamente, dizendo "nós
vai" e desconhecendo as normas da língua, nunca entrará para a
universidade, como entrou o nosso professor.
Devo
concluir que gente pobre tem mesmo que falar errado, não estudar, não conhecer
ciência e literatura? Ou isso é uma espécie de democratismo que confunde
opinião crítica com preconceito?
As
minorias, que eram injustamente discriminadas no passado, agora estão acima do
bem e do mal. Discordar disso é preconceituoso e reacionário.
E,
assim como para essa gente avançada não existe certo nem errado, não posso
estranhar que a locutora da televisão diga "as milhares de pessoas"
ou "estudou sobre as questões" ou "debateu sobre as
alternativas" em vez de "os milhares de pessoas", " estudou
as questões" e "debateu as alternativas".
A
palavra "sobre" virou uma mania dos locutores de televisão, que a
usam como regência de todos os verbos e em todas as ocasiões imagináveis.
Sei
muito bem que a língua muda com o passar do tempo e que, por isso mesmo, o
português de hoje não é igual ao de Camões e nem mesmo ao de Machado de Assis,
bem mais próximo de nós.
Uma
coisa, porém, é usar certas palavras com significados diferentes, construir
frases de outro modo ou mudar a regência de certos verbos. Coisa muito distinta
é falar contra a lógica natural do idioma ou simplesmente cometer erros gramaticais
primários.
Mas
a impressão que tenho é de que estou malhando em ferro frio. De que adianta
escrever essas coisas que escrevo aqui se a televisão continuará a difundir a
fala errada cem vezes por hora para milhões de telespectadores?
Pode
o leitor alegar que a época é outra, mais dinâmica, e que a globalização tende
a misturar as línguas como nunca ocorreu antes. Isso de falar correto é coisa
velha, e o que importa é que as pessoas se entendam, ainda que apenas
grunhindo.