Martha Medeiros
Pés no chão
Volta e meia me pego falando coisas
em que nem eu mesma acredito. Por exemplo, costumo dizer por aí que mantenho
meus pés no chão, que não sou de delirar, de procurar cabelo em ovo, essas
coisas. Pés no chão, pés no chão. Sempre falo isso com um misto de orgulho e ao
mesmo tempo de estranhamento.
O orgulho até entendo - pés no chão é uma
metáfora para sensatez, lucidez. O estranhamento eu compreendi recentemente,
quando li uns versos do norueguês Tor Age Bringsvaerd que descobri serem até
manjados, mas que eu não conhecia: Quem mantém os dois pés no chão/ não sai do
lugar.
Taí o que me incomodava.
Desde então, fico me perguntando
o que os meus dois pés no chão têm me trazido de bom. Trouxeram a consciência de
que não sou melhor nem pior do que ninguém, que faço o que posso.
Os pés
no chão me fizeram reconhecer minhas limitações e a não criar expectativas
mirabolantes em relação a nada.
Me fizeram desenvolver um olho clínico
para detectar exibicionistas, arrogantes e toda espécie de gente que "se acha",
e que me causam verdadeiro tédio. É o que me trouxeram meus dois pés no chão,
tanto o esquerdo quanto o direito.
O que eles podem me tirar é que me
assusta.
Não tenho vocação para a permanência eterna, para nada eterno.
Não mais. Tinha quando era uma menina e não fazia idéia de que estar em
movimento não era sinônimo de indecisão, e sim de sabedoria.
Para
frente, para trás ou para os lados: não importa a direção, o que vale é a troca
de paisagem. O ângulo novo. As coisas que a gente não enxergava antes, quando
estava parado.
Ao tirar os dois pés do chão, permito que as certezas me
abandonem e me concedo o direito ao mistério. Não fico mais tão segura de nada,
e assim abro espaço no cérebro para diversas especulações - que me levarão onde?
Não sei.
O "não sei" pode, sem querer, nos apontar um caminho bem
legítimo.
Tirando os pés do chão, volto a sonhar, eu que havia trocado
sonhos por objetivos. Já não sou criança para temer que essa "levitação" me faça
cometer bobagens. Vai ver é de bobagens mesmo que estou
precisando.
Manter os pés no chão exige contração, concentração. Não é
relaxante. Para sair da posição de sentido, preciso me desapegar, me desprender:
será isso ruim?
Não quero mais em mim uma postura militar, uma cabeça de
sargento, ao menos não todo o tempo. Preciso encontrar em mim a recruta também,
o soldado que cumpre as regras, porém debocha do general quando ele não está
vendo.
Vou manter meus pés no chão, porque delirar todo o tempo não é
possível, não quando se tem responsabilidades adquiridas. O orgulho da
consciência ainda habita em mim. Mas ficar cravada no solo, pra sempre, não dá.
Como diz o norueguês, não se vai a lugar algum, então que eu me desloque
ao menos em pensamentos, em vertigens mentais, em piruetas audaciosas que me
façam pousar alguns metros adiante, lá onde se consegue olhar pra trás e
descobrir o bem que fizemos ao mudar.