Carlos
Heitor Cony
O homem que vendeu a alma
'La
Bohème' ficou, no consenso de puccinianos ou antipuccinianos, como a sua obra-prima
TUDO
SE explica: Puccini vendeu a alma ao demônio. Foi essa -e não podia ser outra- a
explicação de seus rivais e inimigos, roídos e moídos não pelo sucesso popular
e financeiro das obras do compositor, mas pela beleza simples, humana, quase
cafona, de suas partituras.
De
Monteverdi a Menotti, todos os autores de ópera, incluindo Mozart, gostariam de
ter escrito alguns dos momentos puccinianos que definem, justificam e eternizam
o gênero lírico no que ele tem de mais autêntico.
Nem
Verdi em todo o seu esplendor nem Wagner em sua empáfia conseguiram aqueles
acordes que atingem não a arte pela arte (Puccini nunca foi disso), mas o belo
pelo belo. E, dentro do seu universo, "La Bohème" ficou, no consenso
de puccinianos ou antipuccinianos, como a sua obra-prima por excelência, pois é
uma ópera intrinsecamente pucciniana.
Nem
sempre solistas, coro, orquestra, "régie", cenário e vestuário
mostram-se adrede para uma "La Bohème" a preceito. É ópera que requer
clima e trabalho. Requer paixão.
Se o
sucesso internacional e histórico da ópera, em si mesma, se deve ao gênio
musical de Puccini, o triunfo de cada récita também pode ser creditado aos seus
montadores famosos, entre outros, Luchino Visconti, Ingmar Bergman, Franco
Zefirelli, e até mesmo Margarita Wallmann, com seus cabelos brancos, sua perna
aleijada, sua visão da arte, do palco, da vida.
Já perguntei
a vários cantores, aqui e no exterior, sobre a ópera que consideram a melhor, a
mais próxima da sensibilidade de cada um. A resposta, geralmente, sai enrolada
para um tipo de pergunta assim. Alguns complicam, fazem distinções sutis,
escondem o jogo como podem.
Mas
depois de um aperto, todos terminam admitindo: "Bem cantada, bem encenada,
'La Bohème' pode não ser a mais nobre das óperas, mas é a mais ópera de todas".
Afinal,
o temperamento de cada um se identificará com a discutível e não demonstrada
poesia de Rodolfo, a inacabada pintura de Marcello, a música não ouvida de
Schaunard, a filosofia (essa sim, explicitada) de Colline, que não transcende a
uma ária sentimental dedicada ao próprio capote. Conheço filósofos piores.
Cada
vez mais, os divos e divas se recusam a cantar nos ensaios gerais, preferindo
guardar a voz para o espetáculo. Não é nada, não é nada, esse vedetismo acaba
prejudicando os grandes momentos líricos; dificilmente a orquestra tem condições
de se entrosar com o canto e vice-versa. Lembro de anos atrás, quando Mario Del
Monaco fazia três, quatro ensaios com a orquestra, mandando brasa na sua
poderosa e brilhante voz. Na noite do espetáculo, a voz de Monaco não estava "stanca".
Pelo contrário: ficava sempre melhor.
Muitos
garantem que Puccini se apaixonava pelas mulheres que criava: Tosca, Butterfly,
Manon, Mimi. Uma intérprete pucciniana sofre, geme e morre de amor, não por
Mario Cavaradossi ("Tosca"), por Rodolfo ("La Bohème"),
pelo tenente Benjamim Franklin Pinkerton ("Madama Butterfly") ou por
Des Grieux ("Manon Lescaut"). A paixão delas, o "outro",
que está invisível, mas presente em cena, é sempre Puccini.
Visitei
diversas vezes a sua casa em Torre del Lago, não muito longe da sua Lucca
natal, uma das cidades mais típicas da Toscana. Junto com suas armas de caça,
estão as fotos de suas grandes intérpretes, com dedicatórias reveladoras de uma
paixão nem sempre utópica.
Impressionou-me
a da primeira soprano que cantou "Madama Butterfly", uma japonesa que
transcreveu, em cima da foto, um dos versos que ela canta no dueto final do
primeiro ato: "Rinnegata... e felice" -renegada... e feliz.
Realmente,
o compositor era um "homme à femmes". Chegou a ter um problema com a
polícia quando uma de suas empregadas suicidou-se por amor a ele. Outras também
o fizeram, em Paris, Milão, Viena e Nova York.
Aliás,
o sucesso de Puccini nos Estados Unidos foi enorme. Por ocasião de sua primeira
visita, o "New York Times" comparou a sua recepção à de Charles
Lindbergh, o primeiro aviador a atravessar só o Atlântico, pilotando o Spirit
of St. Louis.
Thomas
Edison, o maior inventor de seu tempo, deu a Puccini um de seus primeiros
gramofones, com a enorme tuba em ouro, na qual mandou gravar: "Outros
depois de mim farão inventos melhores, mas ninguém fará melodias mais belas do
que Puccini".