RUTH
DE AQUINO
Thor
Na
mitologia, Thor é o deus do trovão, mestre das tempestades. Na vida como ela é,
Thor é filho do homem mais rico do Brasil e de uma de nossas musas de Carnaval.
Ele tem 20 anos. Na semana passada, deve ter envelhecido. Thor matou na estrada
um ciclista, Wanderson Pereira dos Santos, ajudante de caminhoneiro, de 30 anos.
O
filho de Eike e Luma foi acusado de homicídio culposo, sem intenção de matar. Dirigia
um Mercedes SLR McLaren, placa EIK-0063, um dos carros do pai, que pode chegar
a 334 quilômetros por hora. O carro, de R$ 2,3 milhões, é considerado o nono
mais veloz do mundo.
Thor
jura inocência. Afirma que a bicicleta de Wanderson surgiu do nada e cruzou “inadvertidamente”
a BR-040, estrada entre o Rio de Janeiro e Juiz de Fora. Era noite. Diz que
dirigia o Mercedes dentro da velocidade permitida naquele trecho, 110 quilômetros
por hora. A versão dos advogados da vítima é diferente: Thor vinha em alta
velocidade e atropelou o ciclista no acostamento.
Eike
correu para o Twitter para defender o filho, que se comportou “como um cidadão
honrado” e “poderia ter morrido pela imprudência” da vítima. Sem Twitter, a mãe
de Wanderson também defendeu o filho. Disse que Wanderson fazia esse trajeto
sempre e jamais colocaria sua própria vida e a de outros em risco.
Thor
de fato agiu direito – não como os playboys já citados nesta coluna. Procurou a
Polícia Rodoviária Federal. Soprou no bafômetro, não havia nenhum traço de álcool.
Socorreu a vítima, em vez de fugir. Passou mal ao ver o corpo de Wanderson, com
uma perna e um braço amputados. Deu assistência à família da vítima. E não se
furtou a depor na delegacia. Estava acompanhado de cinco seguranças e três
advogados.
Não é
o primeiro contratempo na vida de Thor. Em maio do ano passado, atropelou, com
um Audi, um senhor de 86 anos na Barra da Tijuca, que também estava numa
bicicleta mas sobreviveu. A história foi revelada na sexta-feira, pelo
colunista do Globo Ancelmo Gois. Esse senhor, cujo nome não foi divulgado,
fraturou a bacia, colocou duas placas e cinco parafusos, fez fisioterapia,
hidroterapia. Thor pagou todas as despesas.
No
mesmo maio de 2011, a revista Quem publicou entrevista com Thor. Ele foi até seu
carro estacionado em frente à casa, um BMW de R$ 770 mil. Deu a partida, pisou
no acelerador e convidou a repórter a experimentar: “Está ouvindo o motor? Pisa
no pedal”.
Thor
acabara de comprar um Aston Martin DBS, conhecido como o carro do agente 007,
avaliado em R$ 1,3 milhão, pagos de seu bolso com aplicações na Bolsa de
Valores. “Trouxe de São Paulo e cheguei a 280 quilômetros na Dutra (rodovia que
liga Rio e São Paulo). Gosto de sentir o carro. Não compro para ostentar a
marca, mas porque sei dar valor à máquina que está ali.”
Não
consigo entender por que pais ricos incentivam filhos jovens e inexperientes a
dirigir máquinas incompatíveis com nossas estradas. Não estamos na Alemanha. Não
temos autobahns. Nossas rodovias estão longe da segurança e excelência germânicas.
Velhos, crianças, bicicletas, animais atravessam as pistas.
O
asfalto é ruim, há buracos e cruzamentos perigosos. Dividimos estradas mal
conservadas com carros e caminhões velhos, caindo aos pedaços, que deveriam ser
apreendidos. É a nossa realidade. Na estrada em que Wanderson morreu, houve 488
atropelamentos em cinco anos.
Sem
condenar ou inocentar Thor antes do tempo, sem aderir à grita geral da luta de
classes no trânsito, pode-se dizer sem erro que essa tragédia foi uma crônica
anunciada, como tantas. Ainda não sabemos o que aconteceu, mas o banco dos réus
está lotado.
No
Brasil, os pais são condescendentes demais com as infrações dos filhos. Eike
disse: “Atire a primeira pedra o motorista que nunca tomou uma multa por
excesso de velocidade”. Ora, Thor já tem 40 pontos na carteira. E 11 pontos de
outras infrações devem bater em breve. O advogado alega que Thor não sabia e
que “outros podem ter cometido as infrações no lugar dele”. Difícil engolir.
Se o
Detran leva séculos para suspender um motorista, os pais não deveriam deixar o
filho dirigir até regularizar sua situação. Alguém faz isso? Eu faço com meu
filho. Enquanto o Detran não cassar sua carteira e obrigá-lo a passar por uma
reciclagem, ele não vai dirigir – pelo menos com meu consentimento.
Há outros
réus no banco. Governos contribuem com o mau estado e a má sinalização das rodovias.
E com a falta de passarelas para pedestres e ciclistas. Motoristas,
motociclistas e ciclistas colaboram com a irresponsabilidade. E a Justiça
arremata com a impunidade. Ninguém fica preso no Brasil por matar em
atropelamento. Ninguém, rico ou pobre. Em nenhuma circunstância.