sábado, 22 de agosto de 2015



22 de agosto de 2015 | N° 18270 
CLÁUDIA LAITANO

Boa-fé


No princípio, era a fé. Muito antes das grandes religiões monoteístas estabelecerem seus dogmas e colarem à palavra sua conotação espiritual, fé era o elemento imaterial do acordo de confiança entre duas partes. Se dois homens saíam juntos para caçar javalis e combinavam dividir a caça na volta, era a fé na palavra mutuamente acordada que garantia que um não iria matar o outro para levar o javali inteiro pra casa.

Vem do Direito Romano o conceito de “bona fide”, que daria origem à “boa-fé” como ela aparece na teoria jurídica e nas leis até os dias de hoje. Conforme o Direito, existem dois tipos de boa-fé: a subjetiva, que busca conhecer as intenções de uma pessoa em determinada circunstância, e a objetiva, que lida com parâmetros que devem ser seguidos por todos, independentemente do que cada um sabe ou acredita. A “má-fé” relaciona-se, portanto, à boa-fé subjetiva. 

Age com má-fé, por exemplo, o caçador que arruma uma boa desculpa para comer sozinho o javali – se é lorota ou não, só ele sabe. No caso da boa-fé objetiva, não vem ao caso a boa ou má intenção do caçador, mas o princípio segundo o qual ele agiu, a lealdade aos acordos estabelecidos e o desejo genuíno de cooperar para um ambiente de justiça e confiança.

Quando o assunto é religião, somos constantemente tentados a eliminar o hífen e a dar um sentido literal aos termos boa fé e má fé. A fé boa sendo aquela que realiza um desejo interior de transcendência e fraternidade que mesmo uma ateísta convicta como esta que vos escreve consegue entender e respeitar. A fé má, desvirtuada, sendo a que incita à intolerância e desrespeita as diferenças de credo, muitas vezes contradizendo os próprios dogmas que afirma defender, ou se aproveita da boa fé (sem hífen) dos crentes.

As denúncias do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, apresentadas nesta semana ao STF, incluem a informação de que parte da propina que o deputado teria recebido foi paga por meio de transferências para as contas da Assembleia de Deus – à qual o deputado é ligado por domínios do espírito e da internet (Cunha é dono de um portal chamado Jesus.com).

Se comprovadas, as acusações de que Eduardo Cunha faz parte do esquema de corrupção descoberto pela Operação Lava-Jato revelam que ele agiu sem a boa-fé objetiva – aquela que exige princípios, probidade e honradez nas relações. Já o envolvimento de uma igreja nas contas sujas de dinheiro desviado de corrupção é um caso exemplar do que pode acontecer quando má fé e ausência de boa-fé acabam associadas na mesma pessoa.