segunda-feira, 24 de agosto de 2015



24 de agosto de 2015 | N° 18272 
L. F. VERISSIMO

Nota longa


A Suíte para Orquestra nº 3 em Ré Maior de Johann Sebastian Bach é famosa pela sua “ouverture” retumbante, mas principalmente pelo belo “air” que se segue. “Air” vem do francês e pode ser “air tendre”, “air gai”, “air noble” etc. O “air” da suíte do Bach é definitivamente “tendre”. E começa com uma única nota prolongada, tão longa, que – penso eu – nunca tinha sido ouvida antes de Bach. 

Os ouvintes da época devem ter ficado atordoados com aquela nota que nunca acabava, e se perguntado o que herr Bach estava inventando. Bach seguia as estritas convenções da música barroca, mas sua obra está cheia de novidades, como a da nota espichada do “air”, cheia de liberdades pequenas mas revolucionárias.

Com alguma ginástica mental, pode-se dizer que Orson Welles fez coisa parecida com a nota interminável do Bach no filme A Marca da Maldade. O começo do filme é uma tomada contínua com uma câmera acrobática que segue os movimentos de um carro e ao mesmo tempo revela o cenário em que se passará a história, uma sórdida cidade de fronteira entre os Estados Unidos e o México – tudo sem um corte. A tomada termina com a explosão do carro e com a plateia tão admirada quanto, provavelmente, os primeiros ouvintes da nota do Bach.

Outros diretores, como o Brian de Palma, por exemplo, experimentaram com longas tomadas sem cortes, mas a “ouverture” do Welles em A Marca da Maldade permanece um clássico imbatível. O grande Hitchcock, em Festim Diabólico (título cretino para Rope), quis fazer todo o filme com uma tomada só, apenas camuflando os cortes a que era obrigado para trocar as bobinas da câmera a cada 10 minutos. 

Na época, a técnica não estava à altura do gênio. Mas Hitchcock também fez uma abertura antológica: com uma única passagem pelos quadros na parede do personagem do James Stewart no começo de Janela Indiscreta, ele nos mostra quem é o personagem, o que ele faz na vida e como foi o acidente que resultou na sua perna engessada.

Bach levou uma vida sem percalços de burgomestre, mas foi um protótipo do criador que, num único lance inesperado de audácia, fulmina a ortodoxia. Anos depois de Bach, Gustave Flaubert daria a receita para todo artista: viva como um pacato burguês, e enlouqueça na sua arte.