sábado, 29 de agosto de 2015



29 de agosto de 2015 | N° 18278O 
PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Turismo

OS JAPONESES E OS CHINESES usavam o pincel para aplicar a tinta na página em branco

Caro leitor, escrevo diretamente da Sicília. Entre o azul do Mediterrâneo e o verde intenso dos laranjais, nosso ônibus vai serpeando pelas estradas da ilha, ligando os pontos que conservam as marcas da mitologia e da cultura clássica. Saímos de Taormina, com o seu inigualável teatro greco-romano, subimos, com o respeito que merece, o impressionante monte Etna, debaixo do qual Hefesto, o deus ferreiro, continua avivando o fogo de suas forjas, e chegamos a Siracusa, terra de Arquimedes. 

Ali, na fonte Aretusa, meu primeiro contato com os papiros – não os de enfeite, mas os de verdade, criados ao sabor dos ventos que vêm da África, balançando suas cabeleiras verdes, curvando suas longas hastes para se aproximar uns dos outros como se fossem poetas conver-sando (a bela imagem, é claro, vem da pena de Guy de Maupassant).

Foi o esperto povo egípcio quem descobriu que podia processar esses juncos (pois é exatamente isso o que eles são) para produzir folhas homogêneas, flexíveis, densas o suficiente para receber a tinta sem borrar. Este avô não tinha ainda todas as qualidades do neto que viria a nascer, o papel, mas permitiu que o homem antigo conhecesse, desde então, o prazer insubstituível de expressar por escrito seus pensamentos e suas emoções.

Os japoneses e os chineses, por exemplo, usavam o pincel para aplicar a tinta na página em branco, os egípcios e os romanos preferiam escrever com um pedaço de junco com a ponta cortada em bisel (e quem diz junco, aqui, diz cana, de onde proveio a nossa caneta, da mesma forma que da costela e do caderno saíram a costeleta e a caderneta). Em Latim, chamavam-se de calamus (do Grego kálamus) essas hastes de mais ou menos 20 centímetros, com a ponta cuidadosamente aparada e fendida, à semelhança das penas de nossas canetas modernas.

De Siracusa, fomos visitar o Etna, um dos mais poderosos vulcões ativos do Hemisfério Norte, onde o guia fez questão de enumerar as tantas calamidades que suas erupções produziram na parte leste da Sicília – o que deu a mim, modesto guia na selva dos dicionários, a oportunidade lembrar ao leitor que calamidade vem do Latim calamitas, palavra que antes de designar, como hoje, um desastre de grandes proporções, primitivamente se referia a qualquer flagelo que arruinasse as lavouras de grão ainda por colher, deitando e jogando no chão as hastes da planta – o nosso já conhecido cálamo.

Mas vamos adiante: saindo de Agrigento, quase chegando a Selinunte, nosso ônibus parou num modesto restaurante na beira da praia onde tive a felicidade de comer um inesquecível prato de calamares fritos – sem me importar nem um pouquinho em saber que o nome desse saboroso molusco vem de calamarius, nome que os romanos davam para o recipiente em que se guardava a tinta e onde se mergulhava o cálamo de escrever. 

Pois é, meu caro leitor: de Taormina a Selinunte, passando pelo Etna, por Siracusa e por Agrigento – ou do cálamo ao calamar, passando pela calamidade, tudo isso é bom turismo, que nos dá cultura e prazer.