sábado, 1 de agosto de 2020



01 DE AGOSTO DE 2020
CLAUDIA TAJES

O João que não era de Deus

Primeiro eu li A Casa - A História da Seita de João de Deus, livro-reportagem do jornalista paulista Chico Felitti sobre a história de João Teixeira de Faria, o sujeito que por décadas se apresentou como o médium João de Deus. E, em cima da fé de seus seguidores, construiu um reino a partir da cidade goiana de Abadiânia. João Teixeira - não vamos usar o nome de Deus aqui para não associá-Lo a quem não merece -, figurinha fácil em programas de auditório, volta e meia operando desenganados em matérias de TV, sempre com uma tesoura ou uma faca de cozinha, as mãos sujas do sangue de um doente já tocando no outro.

O livro de Chico começa nos anos 1970, quando João passou a fazer suas curas - entre aspas. Em 1977, quando se estabeleceu em Abadiânia, João Teixeira já acumulava uma acusação comprovada de homicídio e muitos seguidores em busca de seus autoproclamados poderes para acabar com males físicos e espirituais.

João Teixeira atendia milhares de pessoas tanto em sua sede, a casa Dom Inácio de Loyola, quanto nas filiais que mantinha pelo país e em seus tours pelo Exterior. Enquanto sua fama e sua fortuna aumentavam, rumores sobre os abusos que ele cometia se mantinham milagrosamente escondidos. Desde os anos 1980, mulheres denunciavam os assédios praticados durante as sessões, estupros que João Teixeira apresentava como parte dos processos de cura e purificação. As mulheres chegavam lá frágeis, muitas desesperadas, em busca de uma solução que a Medicina não podia mais garantir. E encontravam um tarado que se dizia médium.

O livro de Chico saiu na mesma época em que o programa Conversa com Bial colocou no ar uma entrevista com algumas das vítimas de João Teixeira. Só então o silêncio começou a ser rompido. Quatro mulheres relataram a Bial os abusos que sofreram em Abadiânia. Apenas a holandesa Zahira Lieneke Mous aceitou mostrar o rosto.

O depoimento dela, no fim das contas, revelou-se o retrato do que mais de 500 mulheres denunciariam nos dias seguintes à exibição do programa.

As escolhidas por João Teixeira eram sempre as mais jovens e bonitas, sem mazelas físicas, acompanhantes de doentes ou com problemas psicológicos. Sozinhas com ele no escritório, eram subjugadas mediante ameaças do tipo "se você não fizer, o câncer do seu marido volta" ou "você tem que fazer para sua mãe não morrer" ou "faça, senão você nunca mais vai ter paz", variações sobre o assunto que as havia levado até lá. De uma de suas filhas ele teria abusado desde que ela tinha dez anos de idade. Com mais de 50, a mulher denunciou o pai.

Era tanto material que o programa de Bial acabou originando a série Em Nome de Deus, seis episódios disponíveis no Globoplay. As entrevistas, conduzidas pela repórter Camila Appel, são duras de ouvir, mas fazem pensar sobre o mercado da fé, esse que promete a cura fácil e acaba contribuindo para o estado de negacionismo em que nos encontramos.

João Teixeira de Faria chegou a manter uma filial da casa Dom Inácio de Loyola aqui no Estado, em Parobé, de onde foi corrido sem maiores explicações, tudo indica que por um caso de abuso contra uma menina. O suposto médium estava preso, condenado a mais de 200 anos de prisão, quando sua defesa conseguiu o recurso da prisão domiciliar por conta da covid-19. Como disse uma de suas vítimas: todas nós estamos presas em casa. Isso não é um castigo para ele. A Casa - A História da Seita de João de Deus e Em Nome de Deus. Leia o livro, veja a série. E abra o olho.

CLAUDIA TAJES

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