sábado, 3 de junho de 2017




03 de junho de 2017 | N° 18862 
DAVID COIMBRA

Sorte na vida

A8,3 mil quilômetros de distância, através da mágica do Skype, percebi que produzi certa inquietude em um dos alunos do Colégio Dom Bosco. Ele e seus colegas me entrevistavam a respeito do meu romance, Canibais, mas o assunto derivara para outros temas, e esse menino parecia realmente intrigado com algo. Ele já havia feito duas ou três perguntas, e pediu para fazer outra. Começou a falar com hesitação:

– Existe um ditado na minha família... É uma frase que meu pai e meu avô dizem... – ele olhou para o teto, pensativo, e enfim repetiu a frase: – “É melhor um burro esforçado do que um inteligente vagabundo”. Eu... Eu sou meio vagabundo... O que você acha disso?

Tive de rir. Mas depois, refletindo a respeito, concordei que se trata de questão pertinente. Muita gente acredita mais em seu presuntivo talento do que em seu esforço. Um problema.

Tenho a impressão de que o futebol é um pouco responsável por essa crença. Aquela velha história de Pelé versus Garrincha, Pelé sendo o certinho e Garrincha sendo o irreverente. Pelé, admirado; Garrincha, amado. Garrincha, a alegria do povo, que jogava para se divertir, e Pelé, o rei, que jogava para vencer. Garrincha, o talento inato, o dom recebido da natureza pródiga, e Pelé o talento cultivado, o treino e o estudo.

O brasileiro admira a criatividade pura, a tirada instantânea, o improviso. O brasileiro cultiva a convicção de que resolverá tudo com inspiração e graça.

É um mito. É ilusão vã. Nem o talento de nascença se consagra sem esforço.

Tome alguns dos maiores gênios da humanidade. Tome um Mozart. Quando Mozart tinha quatro anos de idade, a irmã dele começou a receber aulas de piano. Ele a ouvia tocar e acabou aprendendo sozinho. Só de ouvido!

É o que se chama de ouvido absoluto. E tão absoluto era o ouvido de Mozart, que, um dia, seu pai o obrigou a ouvir um trompetista. Aquele instrumento brutal foi uma experiência tão grotesca para a sensibilidade do pequeno, que ele desmaiou. O único caso, talvez, de desmaio por ultraje auricular.

Tome também Champollion, o homem que desvendou os hieróglifos egípcios. Quase tudo o que conhecemos acerca do Antigo Egito se deve a ele. Pois, ao chegar à adolescência, Champollion era proficiente em praticamente todas as línguas europeias, além de chinês, árabe, hebreu, aramaico, sânscrito e persa. Tinha o hábito de falar copta sozinho, já que ninguém poderia entender o que ele dizia – ninguém sabia falar copta. Muitas dessas línguas, Champollion aprendeu por conta própria. Outro ouvido absoluto.

Champollion e Mozart eram inegavelmente gênios. Nasceram com capacidades específicas muito superiores às de quaisquer outros seres humanos. Mas, para desenvolver essas faculdades, eles se empenharam como quaisquer outros seres humanos não fariam. Ambos morreram jovens, Mozart aos 35 anos, Champollion aos 41, e ambos trabalharam com intensidade febril quase que até o último suspiro.

Quem seriam os Mozarts e os Champollions de hoje? Respeitadas as proporções, Bill Gates, Steve Jobs, Zuckerberg. Todos eles estudiosos, trabalhadores, concentrados, obcecados.

Esforçados.

Não disse na hora da entrevista, mas o que deveria ter dito para o aluno do Dom Bosco era isto:

Seu pai e seu avô estão certos. Olhe para os lados. Está vendo o gordinho de óculos? Está vendo aquele branquicela fracote? Está vendo os nerds e os CDFs? Preste atenção neles. Se eles usarem a fraqueza de hoje para se tornarem fortes amanhã, eles é que dirão aos outros como fazer. Os vagabundos? Esses estarão no sofá, vendo o antigo colega certinho pela TV, tentando entender como é que aquele cara tão insignificante teve tanta sorte na vida.