quinta-feira, 15 de junho de 2017



15 de junho de 2017 | N° 18872 
DAVID COIMBRA

A transformação

Cleópatra era grega. Você percebe como isso tem a ver com a SUA vida, intrigado leitor?

Explico. Cleópatra era descendente dos Ptolomeus. O fundador dessa dinastia foi general de Alexandre Magno, o homem que jamais foi vencido por outro homem. Foi vencido por um mosquito, que, com uma só picada, lhe inoculou a doença que o mataria. Quando Alexandre agonizava, seus generais se acercaram do leito de morte e perguntaram:

– A quem vai ser entregue o seu império? Alexandre, antes de exalar o último suspiro, exalou o último desafio: – Ao mais forte.

Foi a senha da guerra. O império terminou dividido e a Ptolomeu coube, exatamente, o Egito. Esse Ptolomeu era homem inteligente e de bom gosto. Havia sido educado por Aristóteles e amava uma formosa cortesã de Atenas chamada Taís.

Há uma história, a respeito de Taís, bastante ilustrativa acerca da malícia de toda mulher. Aconteceu em Persépolis, capital do império Persa, que Alexandre acabara de conquistar. Taís já era amante de Ptolomeu e havia sido convidada para participar da festa da vitória, realizada no suntuoso palácio construído pelo rei Xerxes 150 anos antes.

Taís era uma mulher de Atenas e, ao contrário do que acreditava Chico Buarque, gostava dessa condição. Tanto que ainda se sentia insultada por uma ofensa antiga, praticada por aquele rei Xerxes, que, ao invadir Atenas, tinha incendiado os templos da Acrópole.

Agora, na comemoração de Alexandre, Taís divisou a chance de se vingar. Esperou que todos bebessem até quase desmaiar, como era hábito dos macedônios. Então, no fim do dia, achegou-se de Alexandre e silvou:

– Lembra que os persas destruíram os templos de Atenas? Que tal tocarmos fogo no palácio deles?

Alexandre topou. Foi o primeiro a atirar uma tocha às cortinas do palácio. Taís seguiu-se a ele e, depois dela, os generais. Quando o fogo já ia alto, Alexandre tomou-se de um laivo de sobriedade, arrependeu-se e mandou que seus soldados apagassem as chamas. Tarde demais. O lindo palácio foi incendiado e Taís sorveu sua vendeta.

Foi com essa mulher que Ptolomeu casou-se. Cleópatra surgiu dessa linhagem, 300 anos depois.

Agora reflita: o Egito era governado por faraós gregos havia três séculos. Fazia alguma diferença para os egípcios? Não. Porque, na poeira dos milênios, os egípcios se transformaram tanto, que nem sabiam mais quem eram. Não havia mais nacionalidade egípcia.

Quando falo em milênios, não exagero. Um ditado árabe diz: “O homem teme o tempo, mas o tempo teme as pirâmides”. Pois o Egito já era velho quando as pirâmides começaram a ser erguidas.

Nesse tempo todo, conquistados e conquistadores foram sendo absorvidos, a cultura mudou, o modo de viver mudou, até que os egípcios originais deixassem de existir. Aos poucos, eles foram perdendo sua língua, sua religião e sua forma de ver o mundo.

E é aí que chego aonde queria chegar. Porque o brasileiro, um nenê, perto do egípcio, já é um povo extinto. Aquele povo do samba e do futebol, do riso fácil e da irreverência, do mulato inzoneiro e da menina que vem e que passa, no doce balanço a caminho do mar, esse povo não existe mais.

Hoje, o brasileiro não se junta para bater uma bolinha ou beber um chopinho, mas para promover tortura de iniciativa privada, como os homens que tatuaram à força a testa de um ladrão de bicicleta, ou para constranger em público um suposto adversário político, como fez aquela matilha de petistas com uma jornalista da Globo, em um avião.

O povo brasileiro não é mais aquele. No que se transformou? Como o egípcio do tempo de Cleópatra, nem ele mesmo sabe. Só sabe que é diferente. Talvez descubra que é pior.