terça-feira, 20 de junho de 2017



20 de junho de 2017 | N° 18876 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

VACILÃO

Entre as muitas imagens recentes da vida brasileira, duas não me saíram da cabeça desde que as vi. Uma é o Gilmar Mendes, essa figura abominável que, dizem juristas de nome e conteúdo, envilece o Judiciário nacional. Com aquele olhar que ele deve entender como significativo, em pausas dramáticas para embasbacar sei lá quem, ainda o vejo atacando os justos e celebrando os venais. Não sei como deixar de pensar que a bandidagem cotidiana vê a mesma imagem que o senhor e eu, só que age, lá à sua reprovável maneira, ao contrário de nós aqui, que ficamos sem ação.

A outra imagem é mais explícita em sua crueldade: a inconcebível tatuagem feita na testa de um rapaz, por um tatuador inescrupuloso a mando de um, depois se soube, ladrão comprovado – enquanto o rapaz parece que nem ladrão foi. “Eu sou ladrão e vacilão”, ficou marcado na testa do rapaz.

O primeiro choque é a simples coisa, em si: alguém marcando a testa de alguém para sempre. O segundo é que a frase ali gravada não tem a forma de uma acusação, mas de uma confissão: a testa diz “Eu sou”. A terceira, que demorei mais para perceber é a sequência dos predicados – ladrão e vacilão.

Ladrão, mais ou menos todo mundo sabe o que é (“mais ou menos” porque o senhor Mendes não será qualificado assim, em regra, mas ele rouba algo muito importante e muito sutil de todos nós, a confiança nas instituições). Vacilão não é tão claro assim, mas se compreende: o cara vacilou, quer dizer, não foi perfeitamente consequente com seus atos, não levou a cabo o que se dispôs a fazer. Em suma – aqui o meu terceiro choque –, os que impetraram aquele horror o acusaram de ser ladrão incompetente, porque se deixou pegar.

“Feio não é roubar, mas roubar e não conseguir levar”, diz uma frase-feita brasileira. O tatuador inescrupuloso e seu mandante ladrão não condenaram o possível ladrãozinho, e sim o vacilão, que, tivesse sido bem sucedido lá na conta deles dois, poderia ser não tatuado, mas admitido como sócio.

Possível legenda para uma fotografia de nosso tempo: “Quem não vacilou virou sócio”.