terça-feira, 6 de junho de 2017



06 de junho de 2017 | N° 18864
DAVID COIMBRA

Se nada der certo

Ontem, abri a janela e vi uma bola de futebol numa poça d’água. Uma bola abandonada no canto de um pequeno parque que fica em frente a minha casa. Era de manhã cedo, tinha de levar meu filho ao colégio, chovia miúdo e aquela bola solitária dava um ar suavemente triste ao dia.

Como é que esses americanos me largam uma bola assim?

Isso é comum por aqui. Os guris vão embora para casa e deixam, no lugar em que jogaram, bolas de futebol, de basquete, de tênis. O professor Juninho, quando veio me visitar, tempos atrás, foi testemunha do que digo. Passamos por um campinho e lá havia quatro ou cinco bolas sozinhas. Paramos. Ficamos trocando passes um pouco. Não posso ver uma bola sem que me assalte o desejo quase lúbrico de chutá-la.

Essa, da poça d’água, até ia lá, bater de chapa nela, mas não fui. Não era o caminho da escola e, se fizesse o desvio, meu filho corria o risco de se atrasar. Planejei chutá-la quando voltasse. Só que, na volta, recebi algumas ligações, me distraí, entrei em casa e, ao dar por mim, já estava na hora do Timeline, na Gaúcha. Ouvi o Potter me chamar:

– Hello, Boston!

Enquanto falava ao microfone, pensei: depois do programa, tenho de ir lá chutar aquela bola.

Conto isso para revelar que meu primeiro plano profissional era ser camisa 10 da Seleção, marcar mil gols e ganhar três Copas. Como percebi que não conseguiria ser camisa 10 da Seleção e que, apesar da minha craqueza, talvez não fosse nem convocado, decidi pela segunda atividade que mais me empolgava, que era viver de escrever.

É o que faço, e com amor, mas, se essa também não desse certo, tinha alternativa: viveria de ler. Ou quase: teria um sebo, com revistas e livros antigos, e passaria o tempo todo lendo e vendendo o que li. Mas não sei se funcionaria. Em primeiro lugar, porque precisaria de dinheiro para comprar as revistas e livros usados. Em segundo, porque sou péssimo comerciante. Não sei vender nada. E tem mais: hesitaria em vender um livro do qual gostasse muito. Ia querer ficar com as raridades para mim.

Então, se isso não desse certo, qual seria a saída?

A gente sempre tem que pensar em saídas.

Logo, não vejo malícia no tema de uma espécie de festinha à fantasia dos alunos de uma escola de Novo Hamburgo, dias atrás. “Se nada der certo”, era a provocação, e os alunos tinham de ir à aula caracterizados como o personagem que escolheram. Tudo muito inocente, portanto, mas rendeu polêmica nas “redes”. Os internautas, que a tudo julgam, condenaram os alunos que foram vestidos, por exemplo, de entregadores de jornal e motoboys. “Todas as profissões merecem respeito”, ensinaram os internautas, que tudo ensinam.

Talvez os internautas sejam assim tão rabugentos porque nem tudo deu certo para eles. Tenho certeza de que muitos são como eu: queriam ser camisa 10 da Seleção, marcar mil gols e ganhar três Copas. Eles não são nada disso.

Já eu fiquei muitíssimo feliz com minha segunda opção. Mesmo assim, amante do futebol que sou, esperei terminar o Timeline e saí correndo de casa. Atravessei a rua. Fui até o parquinho. Lá estava a bola, e não havia ninguém por perto. A poça já estava seca, a chuva cessara e a água fora absorvida pela terra. Aproximei-me. Fiquei olhando para ela. Fiz como fazia o Flávio Minuano ao cobrar falta: recuei um passo e meio. Mirei na goleira imaginária. Tomei ar. E bati nela com o lado de dentro do pé direito, com aquele ossinho que fica ao lado do dedão. Ela saiu em curva, por cima do terceiro homem da barreira, se houvesse barreira, e entrou no ângulo, se houvesse ângulo. Gol! Ergui os braços:

– É camisa dez! – disse para mim mesmo, com a voz do Pedro Ernesto Denardin.

– Ele é demaiiiiiisssss...