sábado, 10 de junho de 2017



10 de junho de 2017 | N° 18868 
DAVID COIMBRA

Os direitos dos ratos

Estava saindo do prédio para levar o meu filho à escola, de manhã cedo, e ele gritou:

– Um rato!

Olhei para onde seu dedo apontava: o jardinzinho ali na rua. Vi uma ratazana gorda, medindo uns 30 centímetros do focinho à ponta do rabo.

– Credo! – exclamei.

O ratão ouviu, olhou para nós com expressão assassina e investiu. Veio direto na nossa direção, em altíssima velocidade. Mas bati o pé no chão com força e ele se assustou, desviou para um jardim lateral e sumiu.

Foi a primeira vez que vi um rato por aqui. O que não quer dizer que a cidade não tenha ratos, claro que tem, todas as cidades têm. Ratos são bichos citadinos e Boston é velha de quatro séculos. Ou seja: esgotos centenários, ideais para vetustas famílias de ratões.

Mas nunca tinha visto um, nesse tempo todo. Tinha visto camundongos, mas o camundongo é um animalzinho simpático. Há um filme sobre o Walt Disney em início de carreira que narra uma história com um desses inocentes ratinhos de salão. O jovem Walt aparece falido e triste. Um dia, quando dormitava em sua mesa de trabalho, decerto sonhando com a perseguição dos credores, um pequeno camundongo surgiu a dois palmos de seu cotovelo, roendo um farelo de sanduíche que Walt havia comido parcialmente. 

Ele despertou e viu o bichinho. Atraiu-o com mais pedaços de queijo e os dois ficaram amigos. Walt passou a levá-lo no bolso da camisa por toda parte. Um dia, porém, enquanto andava pela rua, o camundongo resolveu dar uma volta sozinho e foi flagrado por um guarda. Walt percebeu que a tragédia aconteceria e chegou a gritar um desesperado “nãããããããã...”.

Tarde demais.

O guarda esmigalhou o ratinho debaixo do solado duro do seu sapato.

Walt ficou consternado, mas o camundongo serviu-lhe de inspiração para desenhar o Mickey Mouse, graças ao que ele fez sucesso, enriqueceu, idealizou a Disneylândia e, hoje, até o ditador gordinho da Coreia do Norte é fã do ratinho americano.

Por isso é que não me apoquento com a visão de um camundongo, e sei que há muitos deles em Boston. Já essas ratazanas bem fornidas são a marca de Nova York. Os nova-iorquinos dizem que sua cidade é a que tem mais ratos no mundo. Não sei como eles contaram os ratos de lá, é possível que isso seja mais um produto da mania de grandeza dos americanos, mas o fato é que as ratazanas aparecem com frequência na Big Apple. No YouTube, há um filme no qual uma ratazana entra em um vagão do metrô. Alguém grita:

– Rato no trem!

Mas o metrô já havia trancado as portas e entrado em um túnel. Foi aquela gritaria, todo mundo de pé sobre os bancos do vagão e o rato passeando meio desnorteado para um lado e outro, até a estação seguinte. Uma cena de horror.

Em Porto Alegre também tem muito rato. Ali na Praça XV havia um guri que tinha um cachorro caçador de ratos. De repente, o cachorro saía correndo, capturava um ratão com os dentes e o estraçalhava com gosto. Virou atração na praça. Por onde esse rapaz andará? Ele ganharia dinheiro em Nova York.

Uma vez, uma moça amiga minha foi ao banheiro de sua casa, ergueu a tampa do vaso para acomodar-se e flagrou, emergindo da água, a cabeça de uma enorme ratazana cinzenta. Minha amiga engoliu o grito, fechou calmamente a tampa e fugiu para chamar socorro dos bombeiros, da polícia, do Exército, tudo. Desde então, ela só entra no banheiro depois de rezar uma ave-maria.

Mas o que queria dizer desde o início é que, depois de ver o ratão na frente do prédio em que moro, encontrei o zelador, o Julio. Esse Julio é de El Salvador, mas já mora nos Estados Unidos há 25 anos e seus filhos são tão americanos quanto o Trump. Contei para ele:

– Julio, my friend, acabei de ver um ratão desse tamanho bem aqui.

Ele apertou os lábios e respondeu num suspiro:

– Infelizmente, não podemos fazer nada a respeito...

– E por que não?

– Ele está na rua. Ele é livre. Pode andar por aí como quiser e, enquanto não invadir a propriedade, estamos de mãos atadas pela lei.

Pisquei, perplexo, sem saber exatamente o que dizer. Acabei não dizendo coisa alguma, mas saí dali pensando que esse garantismo de direitos, de fato, bem pode passar dos limites. E que o Julio faria boa carreira como ministro do TSE.