quinta-feira, 15 de junho de 2017



15 de junho de 2017 | N° 18872
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Churrasco

TRÊS PALAVRAS MUITO usadas no Sul, entre elas a comida gaudéria, são de herança europeia

“Sou gaúcho, mas atualmente estou residindo em São Luís, no Maranhão. Mesmo de tão longe, sempre procuro ouvir as rádios de Porto Alegre e não me separo do meu chimarrão diário. Meu sogro, que é maranhense, gosta muito de ler sobre nossa língua e já apresentei esta coluna a ele, que agora é seu leitor também. 

Um dia comentei que nós aí do Rio Grande contribuímos com várias palavras para o Português, mas ele comentou que gíria regional não vale. Então dei o exemplo de pago, querência e churrasco, consagrados na literatura, mas ele ficou duvidando que fossem palavras gaúchas. E aí, professor? Quem está com a razão? Vale uma caixa de cerveja”.

Pois olha, leitor, para não ser direto demais, eu diria que teu sogro vai ficar feliz com a tua falta de pontaria: das três marteladas que deste, nenhuma bateu no prego. Estas três palavras são muito usadas no Sul, é verdade, mas vieram, como a maior parte do nosso léxico, junto com nossa herança europeia. Vamos começar pelo pago, que tem origem e descendentes ainda dentro do Latim. A palavra-mãe é pagus, “marco fixado na terra” e, por extensão, “aldeia, povoação; território rural delimitado por marcos”. O filho mais ilustre é paganus, o nosso pagão, vocábulo que adquiriu diversos significados ao longo de sua história, mas que, primitivamente, significava “camponês, aldeão”.

Quanto a querência (antigamente querença), não resta dúvida que deriva do verbo querer, que também nos deu a benquerença e a malquerença. No séc. 18, Bluteau a define como “aquele lugar onde os falcões e outras aves de rapina costumam criar seus filhos”; sem muito esforço, o termo passou a designar “local onde se nasceu, criou ou acostumou a viver”. Assim a emprega Taunay, que não era gaúcho: “e as pombas, aos centos, cruzavam a margem a buscar inquietas o pouso de querência”.

Por fim, embora persistam dúvidas sobre a origem da palavra churrasco, sabemos com certeza que ela veio de algum lugar indefinido da Península Ibérica, provavelmente do Basco, aparecendo aqui e ali em estonteantes metamorfoses, como um verdadeiro Proteu da etimologia (registram-se formas como charrusco, churrusco, chuscarro, todas com a mesma triste estampa). Prezado leitor, trata, portanto, de ir preparando o bolso para pagar a cerveja – e não caias na tentação de afirmar que, ao menos, o churrasco é uma invenção do gaúcho, porque não é. 

No canto IX da Ilíada, escrita há quase três mil anos, Homero descreve a visita que Fênix, Ajax e Ulisses fazem ao acampamento de Aquiles, que os recebe com uma legítima hospitalidade gaudéria: serve-lhes um trago de bom vinho e, num grande cepo de carne, “separa um lombo de ovelha, uma gorda costela de porco e um lombo de cabra selvagem. Enquanto Automedon segura a carne, 

Aquiles a divide em porções menores e as enfia no espeto. Pátroclo faz um bom fogo de chão e espera a chama baixar, para só então, sobre as brasas vivas, estender os espetos nos suportes. Por fim, joga sobre a carne o sal sagrado”. Como vês, já assavam como nós – e assavam muito bem, aliás!