quinta-feira, 22 de junho de 2017



22 de junho de 2017 | N° 18878 
CARLOS GERBASE

A FALSA CEGA


A foto, muito famosa, é do norte-americano Paul Strand. Foi tirada em 1916, nas ruas de Nova York. Mostra uma senhora que vende jornais, mas estes não aparecem no enquadramento de Strand. Ela está vestida com uma roupa preta e leva em seu peito uma grande placa com a palavra “blind” (cega). Seu olho direito, quase fechado, possivelmente não é capaz de ver coisa alguma. 

Mas o esquerdo, com a pupila virada bem para o lado, está observando alguma coisa. Como ter certeza? Basta olhar para o seu rosto, que demonstra, inequivocamente, uma postura de quem analisa o mundo à sua volta. Strand usou uma câmera escondida para fazer esta e outras imagens do cotidiano de uma grande cidade sem que seus personagens percebessem.

A justiça no Ocidente costuma ser representada por uma mulher vendada que segura uma balança. A metáfora é bem óbvia: os representantes da Justiça pesam as provas depositadas na balança e, de forma isenta, sem olhar para o réu – que pode ser rico ou pobre, branco ou negro, amigo ou inimigo – decide o seu destino na ação em curso. 

A Justiça brasileira e a Justiça gaúcha têm seguido essa imagem? Claro que não. Alguns juízes agem como a vendedora de jornais na foto de Strand: cegos e isentos na placa que levam no peito, mas pelo menos um de seus olhos está bem aberto, enxergam o mundo com toda a subjetividade inerente à nossa faculdade de visão e julgam o réu de acordo com suas próprias convicções ideológicas.

O resultado do julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE, e em especial as manifestações flutuantes de Gilmar Mendes, acabam com qualquer fé na cegueira da justiça. Mendes conseguiu a façanha de fazer um país inteiro desconfiar de nossas cortes mais elevadas. Não menos decepcionante foi o comportamento da Justiça gaúcha no caso da desocupação da casa que servia de abrigo para dezenas de pessoas que não tinham teto, incluindo crianças e mulheres grávidas, jogadas na rua como se fossem bichos. 

Abrir caminho para a violência “legalizada” contra cidadãs e cidadãos numa noite fria de véspera de feriado, alegando que as negociações pacíficas haviam se encerrado, não pode receber o nome de justiça. Muito menos de justiça cega. Strand retratou a Justiça brasileira 101 anos atrás.