sábado, 10 de agosto de 2019



10 DE AGOSTO DE 2019
MÁRIO CORSO

Obesidade mórbida

No inverno de 1944, as rotas de abastecimento da Holanda foram fechadas pela guerra, isolando a população. Houve uma fome devastadora. Quase 20 mil morreram durante o Hongerwinter (inverno da fome).

Estudos sobre a saúde dos sobreviventes descobriram algo inesperado: as marcas do trauma famélico sobre o corpo se fizeram notar nas gerações seguintes. Involuntariamente, o episódio tornou-se um experimento de epigenética: a interação dos genes com o ambiente para gerar um fenótipo.

Além de inúmeros problemas clínicos, os sobreviventes e sua descendência são mais predispostos ao ganho de peso. A fome de ontem pode se transformar na obesidade de hoje, quando o corpo vem programado para estocar toda a energia possível.

Portanto, existe um traço genético nas questões que envolvem a massa corporal. Os obesos lidam contra algo diferente. Com uma oferta de alimentos ultraprocessados altamente calóricos e uma vida sedentária, abre-se uma rota temerária.

Acabou de sair um livro imperdível para quem luta deslealmente contra a balança: Duplo Eu, de Navie, ilustrado por Audrey Lainé, editora Nemo. Trata-se de uma novela gráfica autobiográfica, corajosa e bem-humorada, de uma francesa que conta sua batalha contra a obesidade mórbida.

O melhor da obra é a lista das mentiras que ela se contava para não admitir o problema. Até que ela se dá conta: o IMC (índice de massa corporal) não foi inventado por revistas femininas para fazer a gente se matar para entrar num biquíni que custa um salário mínimo, e sim pela OMS (Organização Mundial de Saúde) para avaliar os riscos ligados ao sobrepeso.

Arma-se uma confusão entre a luta contra o preconceito gordofóbico (produto de um ideal famélico) e a aceitação de si mesmo pelo sujeito, além da ideia de que, com isso conquistado, estaria tudo bem. Tomara que esteja - até porque odiar seu corpo não baixa o peso -, mas é preciso dizer que a manutenção da obesidade mórbida é uma conduta de altíssimo risco para a saúde.

A autora constata que os amigos parabenizam os que perdem peso e nada dizem aos que ganham. E ela engordou mais de 50 quilos. Hoje pensa que gostaria que lhe tivessem dito: "Você engordou, estamos preocupados, como podemos ajudar?".

Na verdade, uma pessoa a alertava, a mãe. Talvez não funcionasse porque vindo dela. Quando uma mãe enxerga na filha apenas o peso, uma armadilha se monta. Se a filha emagrece, fica como a mãe a quer, e ela se sente agradando à mãe e não a si. Seu corpo parece pertencer à mãe, como se lhe custasse terminar de nascer. Então engorda para desobedecer e fica como não quer, entrando num ciclo vicioso.

Mais do que a narrativa de uma dieta, dos ganhos e perdas de peso e amor próprio, o livro é a história de como o corpo é palco dos muitos que habitam dentro de cada um de nós.

MÁRIO CORSO

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