quinta-feira, 1 de agosto de 2019


31 DE JULHO DE 2019
PEDRO GONZAGA

Decálogos

Das muitas coisas que li sobre a arte da escrita, sempre tive especial encanto pelos mandamentos literários, espécies de tábuas da lei para o universo ficcional, mais fáceis de cumprir ou desrespeitar do que aquelas ditadas a Moisés. O escritor uruguaio Horácio Quiroga tem um famoso decálogo para o contista, deliciosamente arbitrário e útil. Juan Carlos Onetti, seu conterrâneo, escreveu 12 e não 10 mandamentos, supondo que dois podiam ser descartados. Hemingway e Raymond Carver também têm suas listas, cheias de caprichos.

Gosto em especial das proibições. No Decálogo original, nada pode ser melhor em estilo e matéria de reflexão do que os vetos enxutos: Não matarás, não roubarás, não adulterarás. Também uma lição sobre o fracasso das leis, mesmo quando divinas.

Anos atrás, preparando uma oficina, modestamente compus um decálogo, que tantas vezes desrespeitei, brasileiro que sou. Mas se uns cinco artigos pegarem, terei vencido a média nacional.

Decálogo da crônica

1 - No canto, como na escrita, trata-se de encontrar o tom certo para a canção.

2 - Valorize o evento que justifica a crônica. Que não seja óbvio a ponto que todos já o conheçam, que não seja particular a ponto de que ninguém mais o entenda.

3 - Seja breve, mesmo que não consiga.

4 - Trata-se de uma conversa. É preciso saber ouvir, mais do que saber falar.

5 - Equilibre razão e sensibilidade. Nem só artigo, nem só confissão. A crônica precisa do comprometimento dos diálogos de botequim quando as gentes já se foram.

6 - A crônica é sobre a luta da criatura humana contra o tempo: o que se perde, o que se preserva, o que se transforma durante o combate. Os despojos desse combate, a isso chamamos crônica.

7 - Lembre-se das duas melhores armas para a crônica (e talvez para a vida): humor e lirismo. O riso e a poesia estão entre as poucas vitórias de nossa triste espécie.

8 - Se tiver certeza, duvide. Se for opinar, espere. Se quiser propor, não imponha. Escrever muitas vezes é descobrir o que ainda não se sabe.

9 - Que seja sempre sobre nós, nunca sobre mim, mesmo que a crônica pareça um relato sumamente pessoal.

10 - Escreva sem pensar o quão perecível é o assunto da crônica. Abrace o problema da experiência humana, fonte do prazer da criação, que é, se tudo der certo, o próprio prazer da leitura também.

PEDRO GONZAGA

Nenhum comentário:

Postar um comentário