quinta-feira, 1 de junho de 2017



01/06/2017 - 03h00min
David Coimbra

Os perigos do vinho  

Conhecedores furiosos me atacaram sem pena.

As pessoas podem se tornar suscetíveis pelas razões mais inesperadas. Outro dia, escrevi a seguinte frase: "Agora estou pronto para um tinto suave e um livro denso". Queria dizer, ao me referir à suavidade do vinho, que ele era "leve", não "doce". Mas admito ter derrapado na escolha do adjetivo, porque, sim, urge reconhecer: o vinho definido como "suave" é o vinho adocicado, meio enjoativo.

Tudo bem, pensei, depois de publicado o texto. Trata-se de um pormenor.

Pormenor?

Nada! Recebi e-mails vermelhos de fúria de leitores. Mas como é que eu tomava vinho suave? Que estúpido eu era. Só uma besta podia beber vinho suave. Isso provava muita coisa ruim que já suspeitavam a meu respeito.

Fiquei a cismar. Não sabia que havia tanto ressentimento contra o vinho suave e seus possíveis adeptos. Até, vou dizer, faz tempo que não vejo um vinho suave. Certamente ainda existe, mas onde andará?

Quando era guri, vinhos suaves apareciam em grandes garrafões de cinco litros. Eram feitos com aquela uva Isabel, pretinha, boa de se comer, nem tanto para se beber. Mas eu e meus amigos bebíamos sem culpa, desculpa.


Houve, inclusive, um vinho doce muito famoso, o alemão Liebfraumilch, nome lindo, "o leite da mulher amada", só que branco. Vinha em uma garrafa com rótulo azul. Esse vinho virou moda no Brasil e, confesso, consumi-o bastante. Hoje me é repugnante. Não beberia o leite da mulher amada.

Num sábado de 1986, em Urussanga, terra produtora de vinhos no sul de Santa Catarina, eu e outros jornalistas visitamos uma vinícola de lá. Era de manhã cedo, quando começamos a provar os diferentes produtos da casa. À tardinha, eu parecia aquele casaco que foi tirado do cachorro. Mareado, fui para meu apartamento, me deitei fazendo oooooh... e, no meio da noite, saltei no colchão: por Baco! 

Eu tinha marcado encontro com uma inhugazinha! Mesmo sentindo a cabeça rodando, rodando mais que os casais, levantei-me e fui correndo ao ponto combinado. Naquele tempo sem celular, o resultado foi mais uma derrota sentimental. Pior: durante os três dias seguintes, mais do que passar mal, achei que ia morrer, que o excesso de álcool rompera algo dentro de mim. A pior ressaca da minha vida. Traumatizado, fiquei dois anos sem tomar vinho.

A verdade é que não entendo lhufas de vinhos. Até fiz um rápido cursinho, uma vez, mas não adiantou nada, só aprendi a rodar a taça para "liberar o aroma" e a sorvê-lo com a narina esquerda, por causa de alguma coisa que tem nesse lado do cérebro, que não lembro o que é.

O certo é que consigo identificar se um vinho é bom ou ruim até o limite dos cem dólares. A partir daí, tudo fica tão igual...

Certa feita, um grande amigo me deu um Romanée-Conti de aniversário. Esse vinho, não sei se você lembra, foi bebido pelo Lula para festejar a vitória na eleição de 2002. Custa entre 6 mil e 20 mil dólares a garrafa.

Pois lá estava eu de posse do meu Romanée-Conti. Como bebê-lo? Com que ritual? Em que oportunidade, se não venci nenhuma eleição? Com que acompanhamento? Essas questões me atarantaram por algum tempo, até que me irritei, convoquei a Marcinha e desfrutamos o vinho mais valioso de nossas vidas com um arroz com linguiça que fiz com minhas próprias mãos. Estava ótimo, obrigado, amigão, mas não posso afirmar com certeza que esse mais caro tenha sido o melhor.

Outra vez, na casa de outro amigo remediado, ele colocou uma garrafa de um tinto francês bem na minha frente e informou:

– Comprei num leilão da Sotheby's. Vinte mil dólares.

– Tira essa garrafa de perto de mim – pedi. – Se bato nela sem querer, e quebro, estou perdido.

Ele riu, abriu a garrafa e bebemos. Bom. Excelente. Mas, puxa, vinte mil dólares...

Quer dizer: sou um fracasso como entendedor de vinhos. Poderia, inclusive, beber um suave, se me dessem. Seria capaz disso. Antes. Agora, não. Depois de provar o sabor do ódio enólogo, vinho suave, nunca mais.