sábado, 16 de março de 2019


16 DE MARÇO DE 2019
PAULO GERMANO

A CARONA QUE EU NÃO DEI

Fazia 37ºC às 10 da manhã, e o nosso carro avançava com o ar ligado pelo asfalto quente. Foi quando te vi, empurrando um carrinho de mão à beira da estrada. - Coitado, com esse sol na cabeça... - e pedi para o motorista parar.

Estávamos na divisa da Bahia com o Tocantins. Minha missão, naquele maio de 2014, era cruzar o interior do Brasil durante os 30 dias que antecediam a Copa do Mundo. A gente buscava histórias pelo caminho, histórias de pessoas que a imprensa mostra pouco, e me deu uma angústia ver a tua marcha solitária.

- Aqui tem um quilo de arroz - teu olhar apontou para o carrinho -, outro quilo de feijão, uma mortadela, quatro ovos e a minha barraca.

- Mas para que a barraca?

Teu nome era Marcos Jânio - te procuro até hoje, como eu queria te achar de novo. Tinha começado a caminhada às cinco da manhã, em busca de um emprego nas fazendas que ficavam mais adiante. Sem casa para morar, te restava a barraca. Sem dinheiro para o ônibus, te restavam as pernas.

- Quero lá com o dia ainda claro. - Quê?! - levei a mão à cabeça. - Mas são 14 horas no sol!

- É, mas quero ver se já me botam na roça. Aquilo me comprimiu o peito. Olhei para a tua pele parda, as rugas profundas, calculei uns 38 anos, mas eram só 28. Ouvi sobre a tua mãe, que já tinha morrido, e sobre o teu pai, um bêbado sumido.

- Sou sozinho no mundo. - E quem te deu a comida?

- Ganho um troco com reciclagem, mas quero um emprego mais do bom. Desejei sorte. Ganhei teu sorriso, me despedi e entrei no carro. Em cinco minutos, já tínhamos andado oito quilômetros.

E o ar-condicionado já me secara o suor. E o banco de couro já me aliviara a coluna.

E pensei no desconforto do teu trajeto, no peso do carrinho de mão, no calor que seguia aumentando. Verdade que eu tinha pressa - um cacique me esperava na maior aldeia do Tocantins, e ele pediu que não me atrasasse -, mas, puxa vida, e se eu voltasse para te levar até as fazendas? Azar do cacique, azar do meu trabalho, azar da matéria que eu precisava enviar, alguém tinha de fazer algo, e eu realmente quis fazer algo, eu juro que quis, Marcos Jânio. Mas, quando vi, já tínhamos avançado 60 quilômetros.

- Quantos quilômetros Marcos Jânio já avançou? - era só no que eu pensava.

E não voltei. Aquela cena, o nosso carro indo embora, e eu com o pescoço virado para trás, te vendo sumir de vista pelo vidro traseiro, empurrando o carrinho sem reclamar, aquilo me persegue até hoje. Qual era o meu papel naquele dia, Marcos Jânio? Qual é o papel de um jornalista quando depara com uma situação tão triste?

Hoje eu sei que, se voltasse para te dar carona, resolveria um problema pontual, momentâneo, só um fragmento da tua vida sofrida. Não resolveria o principal: a tua vida sofrida.

Escrevo este texto ainda culpado, mas agarrado a uma ilusão meio altruísta - logo eu, que me senti tão individualista -, como se pudesse fazer algo por ti cinco anos depois. Se errei ou não, que pelo menos uma fatia da sociedade também possa, ao ler tua história, repensar o papel e a responsabilidade que tem.

E que o país, um dia, possa te dar uma carona de verdade.

PAULO GERMANO

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