sábado, 16 de março de 2019


16 DE MARÇO DE 2019
MARTHA MEDEIROS

O cabelo verde

Ela tinha o rosto coberto por sardas, especialmente no nariz e nas bochechas. Contou que, quando era criança, a garotada do colégio pegava muito no pé dela - naquela época, ainda não se falava em bullying. Cresceu odiando ser chamada de sardenta. Eu disse a ela para não se estressar, as sardas davam a ela um ar juvenil, e quer saber? "Eu nem tinha reparado que você tinha sardas antes de você comentar". Ela começou a rir. "Claro que você não reparou, por que acha que uso o cabelo verde?".

O cabelo dela era mais verde que um gramado de estádio de futebol em jogo de estreia da Copa, não havia quem não notasse.

Desde então, quando vejo uma mulher com o cabelo muito colorido, penso: como ela é incrível, quanta personalidade - e então fico buscando as sardas ou seja o que for que ela esteja tentando esconder.

Não estrague a brincadeira. Óbvio que muita gente pinta um arco-íris no cabelo porque gosta, apenas porque gosta, sem que seja um subterfúgio. Mas com subterfúgio tem mais graça e inventamos um assunto.

Outro dia vi uma garota toda tatuada - muito, muito. Os dois braços inteiros, as duas pernas tomadas, as costas sem espaço para nem mais um desenho. Se alguém não soubesse o nome dela, como a identificaria? "Aquela menina tatuada". Ninguém diria "aquela menina gorda" - não só porque seria grosseiro, mas porque o fato de ela pesar quase 100 quilos havia se tornado secundário diante da pele hipergrafitada.

Será que também privilegiamos algo na nossa aparência a fim de camuflar aquilo que não queremos que ganhe destaque? Tive uma colega da faculdade que costumava frequentar as aulas com camisas e vestidos superdecotados. Ela tinha seios lindos, poderosos. Pois agora estou lembrando que ela tinha também um nariz de respeito. Considero os narigudos e narigudas o suprassumo do charme, mas é provável que ela discordasse do meu senso estético - na época, encontrou um jeito de desviar a atenção para o seu colo e funcionou.

Tem gente que consegue esse câmbio de foco sem envolver o visual. Escreve livros a fim de disfarçar a timidez, é exibicionista para que não reparem sua insegurança, está sempre correndo de um lado para o outro para que ninguém perceba que não tem nada pra fazer. É a velha história: enquanto um lado fica iluminado, o outro permanece convenientemente na sombra.

Mas voltando ao cabelo: pintar, tosar, descolorir é bem mais fácil do que fazer um tratamento de pele, emagrecer 20 quilos, colocar silicone, operar o nariz. Fica autêntico, divertido e ainda distrai daquilo que consideramos uma imperfeição - mesmo correndo o risco de estarmos mascarando o que há de mais bonito em nós.

MARTHA MEDEIROS

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