quarta-feira, 13 de março de 2019


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3 DE MARÇO DE 2019
DAVID COIMBRA

A mulher que trai

Usei este título, "a mulher que trai", para mais de uma crônica que escrevi tempos atrás. Não sei quantas foram. Quatro ou cinco. Numa delas, um pequeno conto, comecei assim:

"Gisa traía os homens. Era um hábito. Mais, até: um prazer.

Traiu o primeiro ainda muito jovem, tinha, talvez, 15 anos de idade.

O namoradinho gostava dela, ela gostava do namoradinho, mas um dia lhe surgiu aquele rapagão mais velho, moço de cabelo à escovinha e farda abacate do serviço militar. Gisa namorou com ele também. Namorou com os dois ao mesmo tempo, e viu que era bom. O medo de ser descoberta, a comparação das carícias de um e outro, a ideia de que enganava dois homens, tudo isso lhe dava uma estranha sensação de poder e fazia com que se sentisse muito, muito bem.

Gisa continuou traindo os homens. Aos 25 anos, acumulava já uma década de experiência na atividade".

Divertia-me escrevendo essas histórias. E os leitores, em geral, se divertiam também. Mas esse pequeno conto produziu reações estranhas. No dia da publicação, pelo menos quatro leitoras vieram me perguntar de onde havia tirado a história. Eu, surpreso:

- Ué? Da imaginação.

Uma delas rosnou:

- Imaginação. Sei.

No dia seguinte, ligou-me um sujeito que morava em Pelotas. Inquiriu, em tom ameaçador:

- Quem te contou a minha história? Quem te autorizou a publicar?

Não adiantava dizer que tinha inventado tudo. Ele insistia:

- Quem te contou? Quem?

No dia seguinte, fui almoçar com a minha mãe. Encontrei-a apreensiva.

- Minha vizinha está achando que tu escreveu a história dela no jornal.

- Que vizinha? - espantei-me.

Era uma senhorinha que andava de pantufas pelo prédio. Não sabia nem o nome dela, como saberia de sua vida pregressa.

Mas o pior se deu quando cheguei à Redação. O Marcelo Rech, diretor do jornal, me chamou e disse que uma colega havia se queixado de que o conto era inspirado nela. Era funcionária nova, eu não fazia ideia nem de como vibrava o som da sua voz, mas ela jurava que a história era para ela!

Mas o que é que estava acontecendo???

Continuei perplexo por alguns dias, negando sempre que a história fosse real. Mais tarde, concluí que o alvoroço ocorrera por causa do título. A mulher que trai. Mulheres e homens traem e são traídos. Não há nada que gere mais infidelidade do que a monogamia. E, quando a infidelidade é descoberta, é só isso que ocupa a cabeça dos envolvidos. Logo, era compreensível que muitos se identificassem com uma história de traição publicada no jornal.

Recordo-me agora desse caso devido ao grande tema da atualidade: as fake news. Quem as fabrica quer que elas pareçam verdadeiras, mas elas são falsas. Enquanto que eu escrevera algo que era falso, mas as pessoas juravam que era verdadeiro.

- É tudo falso! - eu repetia.

- Sei que é verdadeiro! - respondiam os leitores.

Sabe qual o motivo dessa reação? É que as pessoas não acreditam no que leem, elas leem o que acreditam. A história pode ser inverossímil, mas, se elas querem acreditar, acreditam. Não é à toa que as fake news são mais compartilhadas na internet do que as true news. Números se moldam a teses, interpretações se encaixam com preferências. O desejo é mais forte do que a realidade. Você não acredita no que é sensato, no que é provável e nem mesmo no que é bom. Você acredita no que quer acreditar. Jesus estava certo: a fé move montanhas. A fé é mais poderosa do que a razão.

DAVID COIMBRA

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