terça-feira, 26 de março de 2024


26 DE MARÇO DE 2024
NILSON SOUZA

O rio e a lenda

A cidade dos meus andares completa hoje mais um outono. Temos, sim, belas primaveras por aqui, com praças floridas e calçadas pintadas de pétalas lilases e amarelas, mas contamos a passagem dos aniversários da Capital em outonos porque nesta estação está a data oficial da fundação da Freguesia de São Francisco do Porto dos Casais - nome antigo da cidade, que logo, por injunções políticas, foi substituído por Freguesia de Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre.

Nasci porto-alegrense e tenho certeza de que amaria minha aldeia natal com qualquer nome, mas confesso minha simpatia pela denominação histórica de Porto dos Casais. Deve ser em razão de meu sangue açoriano. A troca do santo pela madre não me afeta em nada, até mesmo porque ando de nariz torcido com um certo autoritarismo religioso que agora deu para se invocar até com uma das lendas urbanas mais cativantes da cidade - a história da maldição do escravo Josino sobre a Igreja das Dores.

Ora, vão rezar, gente!

E, por favor, incluam em vossas preces o nosso rio. Este, sim, está a merecer orações fervorosas. Ok, podem chamá-lo de estuário, lago, delta, ou o que lhes parecer mais adequado, mas a verdade é que precisamos cuidar melhor dele e respeitá-lo mais. Cada vez que vejo uma fotografia antiga daquela área onde se localiza hoje o trecho 3 da Orla, levo um susto retroativo. O novo espaço ficou lindo, mas dói constatar o quanto já esprememos esse rio que nos sacia a sede desde a formação das primeiras povoações locais. Não faz muito, suas águas lambiam o Pão dos Pobres e o Asilo Padre Cacique. Agora, estão separadas dessas instituições por avenidas, parques, quadras de esporte, calçadas e prédios.

Mas isso nem é o pior. Doloroso mesmo é saber que já se tornou praticamente irreversível a poluição causada por esgotos domésticos e produtos químicos lançados diariamente por pessoas e fábricas no manancial de água que percorre vários municípios da Região Metropolitana. O rio da minha aldeia virou um lixão aquático. As praias da Zona Sul, onde me banhei na infância da minha atual vida - portanto, há menos de um século -, estão hoje tomadas por bandos de urubus.

O rio da minha aldeia não tem motivos para celebrar este aniversário da cidade que o sequestrou de sua natureza e que continua a maltratá-lo. Rezemos por ele! E por Josino, que também está sendo ameaçado de despejo póstumo da própria história por gente de pouca tolerância e nenhuma imaginação.

NÍLSON SOUZA

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