terça-feira, 12 de março de 2024


12 DE MARÇO DE 2024
NILSON SOUZA

O bruxo e o robô

Deu o que falar aquele totem com o avatar digital de Machado de Assis colocado na entrada da Academia Brasileira de Letras para interagir com os visitantes. Nem bem a poeira do primeiro espanto baixou e já começaram as críticas, que vão da cor da pele do escritor aos seus posicionamentos póstumos. Nada de novo no front da polarização nacional. Porém, se o debate estimular a leitura ou a releitura de suas obras, a inovação já terá sido válida. Mas o que mais me chama a atenção nessa polêmica é a evidência de que parte expressiva da nossa intelectualidade continua resistindo à inteligência artificial.

Já parece até uma nova forma de negacionismo. Ora, o mundo não vai girar para trás. Os algoritmos, os robôs falantes e os avatares que incorporam rostos e vozes de pessoas vivas e mortas chegaram para ficar. Assim como Elis Regina foi reanimada para cantar com a filha naquele anúncio da fábrica de veículos, é praticamente certo que outros famosos (e até muitos anônimos) voltarão do país da saudade para nos visitar de vez em quando.

De minha parte, confesso, fiquei bem impressionado com a versão digital de Machado de Assis, embora um tanto decepcionado com a sua resposta sobre a suposta traição de Capitu. Como Bentinho, teremos que levar a dúvida para a eternidade. Porém, é possível que em algum ponto futuro também tenhamos a chance de voltar de lá para rediscutir o assunto.

O curioso do ludismo digital é que a maior resistência à inteligência artificial parte de pessoas que poderiam tirar melhor proveito da tecnologia, exatamente aquelas que detêm maior bagagem cultural. Como se sabe, os robôs são "treinados" por humanos. E obedecem com mais precisão às orientações daqueles que melhor se comunicam com eles. Com todo o respeito aos jovens que já nasceram digitando com os polegares, são os leitores experientes que possuem maior vocabulário e informações mais consistentes para interagir produtivamente com os emissários da inteligência artificial.

Dou um exemplo prático: poucos adolescentes saberiam o que perguntar para o Bruxo do Cosme Velho recém-ressuscitado. O apelido, como sabem os que já leram sobre o patrono da ABL, lhe foi dado pelos vizinhos de rua depois de vê-lo queimando cartas em um caldeirão, no pátio de sua residência. Em compensação, até para não acirrar o conflito de gerações, cabe reconhecer que os jovens recebem com muito mais naturalidade inovações tecnológicas como o totem falante da ABL.

NÍLSON SOUZA

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