sábado, 3 de agosto de 2019


03 DE AGOSTO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

TERATOGÊNESE

Era noite de magna borrasca; entre mil raios, rugiam velozes ventos, pavorosos. O uivo de lobos e acres feras afastara ninfas e deidades do bosque; em suas tocas, no oco dos carvalhos, corujas piscavam assustadas. Era prenúncio de portento mórbido, mas, por conjura dos fados, ocorreu 13 dias antes do previsto o parto inglório, em que um monstro nasceria (teratogênese); nesses casos, dão-se reveses, e tudo piorou com o passar das horas. 

Em torno do ser malsão ali gerado, magos malévolos celebravam com taças de fel, quando um deles tomou-o em suas garras e o ergueu aos espíritos noturnos, entre imprecações malignas. Uma gralha aturdida voou e defecou em sua boca, prenunciando a qualidade das falas que dali proviriam. Que monstro aparece nesse mito? Um tal que não cabe na literatura nem deveria caber na História, jamais.

De sua infância pouco se sabe, pois vagava entre aldeias, sem criar raízes. Nunca apareceu professora ou amigo antigo para lembrar algo bom, nem poderia. Suspeita-se de que, a frustrações variadas, somaram-se fortes doses de rancor e ódio, que o marcaram profundamente. Ao chegar à puberdade, ingressou em escola que lhe incutiu cego desejo de poder e amor à violência e lhe impulsionou a arrogância inata. Foi assim gerado e cevado o mito, monstro infausto que um dia subiria ao topo da montanha e, de lá, com brados sempre coléricos, assombraria, uma vez mais, a floresta e ameaçaria ao mundo e aos que um dia sonharam viver com doçura.

Como somos todos feitos de Eros e Thanatos, desejos de amar e matar, o monstro logrou tocar na parte mórbida do povo de Lisarb e provocou paixão epidêmica, assustadora. Mentiras, farsas, delitos e o poder do ódio, por vezes maior que o amor, moveram séquito cego, seitas e safados, dando glória improvável ao ser odiento. 

O que não poderia ser mais que caso gravíssimo de monstruosidade mítica tornou-se símbolo de uma ignorância latente, hipócrita, despudorada, e despertou o monstro íntimo de milhões de alienados. Há milênios essa ameaça é cogitada, e preparados contra ela antídotos eficientes: artes variadas, filosofia, literatura, educação, ciência, o diálogo, a democracia e tudo aquilo que anima a sensibilidade, o pensamento e o bom senso.

Esses dons dissolvem o efeito letal de seres trevosos, e, por isso mesmo, o monstro perseguia tudo o que contivesse luz, saber, amor, imagens do outro, as belezas do mundo, direitos que edificam, serenidade, simpatia e empatia. Sempre bestial, ele trocava o amor que une a humanidade pelo zelo colérico com que a fera fecha-se na toca e protege a própria prole, com filé mignon surrupiado, e não perdia chance de machucar os ouvidos de todos com ignomínias sem precedentes. O prazer e o poder do monstro é ser monstro.

Aos poucos, mais e mais vítimas do monstro perceberam o terror do transe, despertaram para se afastar do cálice de horrores que um destino doente nos impôs e foram achar caminhos para somar-se aos que resistimos, reconstruir a sociedade, semear primaveras e redescobrir o valor das verdades puras e belas da vida, em uma democracia.

Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS | FRANCISCO MARSHALL

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