terça-feira, 6 de agosto de 2019



06 DE AGOSTO DE 2019
DAVID COIMBRA

Por que precisamos enrolar tanto

A minha mãe não ia se dar bem nos Estados Unidos. Ela adora jogar conversa fora. Americano detesta.

Aliás, esta expressão, "jogar conversa fora", é perfeita para definir o que os americanos sentem a respeito. Para eles, uma conversa que pode ser jogada fora é inútil. Faz sentido: se a conversa é descartável, por que perder tempo com ela?

Agora mesmo, veja o que me aconteceu: estava me preparando para viajar e organizei todo o apartamento. Fechei bem fechadas portas e janelas, limpei o que tinha de ser limpo e tirei da geladeira e dos armários tudo o que poderia entrar em decomposição. Lá dormiam umas batatas que já estavam murchando, um queijo mofado, umas carnes de cor suspeita, um pão com o qual poderia fazer penicilina. Por que a Marcinha deixa essas comidas antigas guardadas? Um mistério. Bem. Pus tudo em um saco preto de plástico e deixei-o aberto no meio da cozinha. A última coisa a fazer seria fechá-lo e levar para o lixo.

Cheguei ao aeroporto na hora, embarquei, tudo certinho. O avião levantou voo, me deu um sono, fechei os olhos para dormir e, então, um pensamento medonho me fez saltar na poltrona: o lixo!

Eu havia esquecido o saco de lixo aberto no meio do piso da cozinha. Um saco de lixo cheio de comidas que apodrecem facilmente, como carne. Com o calor que está fazendo no verão americano, imaginei o que aconteceria. Lembrei de uma exumação de cadáver que acompanhei certa vez, quando cobria polícia. Seria mais ou menos isso. Os ratos e as baratas invadiriam a cozinha, os vizinhos iam pensar que tinha um cadáver no apartamento, chamariam os bombeiros, eles arrombariam a porta, um escândalo.

Fiquei ansioso até conseguir internet. Então, passei um e-mail para o administrador da imobiliária, perguntei se ele por acaso possuía uma chave extra e expliquei a situação em pormenores, pedindo que ele fosse lá a fim de pôr o lixo no lixo.

A resposta veio em seguida. E foi essa:

"OK".

Só isso, "OK". Nenhuma ponderação, nenhuma pergunta, nada. Aquilo me deixou apreensivo. Esperei mais umas quatro horas e mandei outro e-mail reforçando que havia carne naquele saco e que odores miasmáticos poderiam tomar conta do prédio inteiro se uma providência não fosse tomada com urgência. Ele respondeu assim:

"done".

Ou seja: "feito". Sem ponto. Sem nem sequer inicial em maiúsculo. Um "done" perdido no meio da tela imensa.

Tal brevidade seria preocupante se estivesse lidando com um brasileiro. Poderia ser esquiva para não fazer o que devia ser feito ou simplesmente rudeza. No caso de um americano, não. Ele comunicou que tinha feito o que fora pedido e mais não havia a ser dito. Ou seja: nada de jogar conversa fora.

Por que nós, brasileiros, somos assim? Por que fazemos prolegômenos para solicitar algo? Por que tanto arrazoado para uma pergunta simples?

É porque PRECISAMOS ser assim. Porque temos de contar com a boa vontade dos outros para conseguir até mesmo o que é nosso por justiça. Sabemos que, para viver bem, não nos basta o direito, necessitamos do privilégio. Foi o que aprendeu, por exemplo, a minha mãe. Tendo de criar três filhos sozinha, sendo professora do Estado, ela precisava conversar muito para obter o que queria. Funcionou. Mas não vá tentar explicar isso para um americano.

DAVID COIMBRA

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