sábado, 8 de julho de 2017



08 de julho de 2017 | N° 18892 
LYA LUFT

Atrás do biombo


Raramente comento aquilo que estou escrevendo. Há meses, comecei um novo livro, e posso até ter partilhado com os leitores desta coluna alguma coisa como: o nome seria A Caixa de Pandora, o assunto seriam os sentimentos humanos. Se não comentei, agora está dito. Acontece que, ao menos com esta aqui, o livro surge quando quer. Certa vez, o velho querido professor Guilhermino Cesar – eu ainda nos primeiros romances – me disse algo como “uma de suas virtudes é que você só escreve o livro que quer ser escrito, e termina antes que acabe a respiração”.

Nenhum elogio convencional, do tipo “você escreve muito bem”, ou crítica arrasadora, como “melhor que tivesse ficado quieta”. Ainda penso no que disse o mestre. Um livro meu, razoável, tem de querer ser escrito, e aquela Caixa não estava a fim. Claro que alguém que se aventura na escrita precisa no mínimo escrever direito, com naturalidade, pois tem de manejar seu instrumento básico assim como o cirurgião precisa saber manejar seu bisturi. Mas não basta. E aquela Pandora não simpatizou comigo. Eu escrevia, e tudo saía sem graça. Talvez porque, como eu disse numa palestra, “quando é demais, até a desgraça perde a graça”.

Ainda por cima, apareceu um ramo da Lava-Jato chamado A Caixa de Pandora, e a minha foi imediatamente deletada, para não pensarem que eu entrava de novo nessas areias movediças. Desisti do livro, avisei o editor, “sem problemas, um dia você escreve outro”. Tempos depois, eu naquela falsa vagabundagem lírica que parece uma preguiça fenomenal, surge o novo livro, este que agora escrevo: A Casa Inventada. Não vou falar dele. Apenas revelo que, a certo momento, em certo lugar dessa casa, há um biombo. Nem alto, nem baixo, nem claro, nem escuro, nem fechado, nem rendado, nem real, nem imaginário. Lá está, intrigante e um pouco deslocado.

Por trás dele, abre-se uma das coisas mais preciosas que temos: o espaço do silêncio. Esse, temido por tantos, desejado por alguns, aproveitado por poucos de nós. Primeiro, aquele silêncio que é alívio, como quando a gente entra numa sala e todo mundo está falando alto, assuntos diferentes, TV ligada com volume espantoso, alguém rindo, criança chorando, cachorrinho latindo (quem sabe um gato miando), e a gente pede “pelo amor de Deus, podem baixar esse volume todo?”. E todo mundo se cala, nos olha, alguém desliga a TV, e imediatamente todos, todos, suspiram. Que maravilha, o silêncio.

Atrás desse meu biombo, que ainda estou construindo, abre-se o reino em que podemos escutar a nossa própria voz, ou as vozes de dentro: que nos encantam, nos assustam, nos atordoam, das quais queremos beber o segredo ou fugir em disparada. Gosto do silêncio, muito. Desde que ali perto estejam as vozes amadas, em alguma parte um barulho de chuva e, ainda que longe, o rumor do mar. 

Como nos espelhos permanecem para sempre as figuras que um dia ali se refletiram, acredito que guardamos no nosso silêncio a memória de todas as vozes ouvidas: amorosas e sábias, cretinas ou hostis. As vozes do mundo. E a nossa voz perguntando baixinho: “Afinal, o que é tudo isso que chamamos vida – e o que estou fazendo com a minha?”.