sábado, 22 de julho de 2017



22 de julho de 2017 | N° 18904 
PALAVRA DE MÉDICO

O AMIGO QUE CADA UM PERDEU AO SEU JEITO

Sant’Ana era intrinsecamente avesso ao meio- termo. Com virtudes e defeitos retumbantes, encantava e repelia com igual intensidade. Nunca conheci quem lhe fosse indiferente, e se esse indivíduo existisse, aposto que seria desinteressante.

De origem humilde e infância marcada por perdas afetivas dilacerantes, Sant’Ana erigiu seu modelo próprio de sobrevivência, no qual ele era promotor e juiz de si mesmo. Extremamente inteligente, e com uma memória prodigiosa, brincava com as palavras e tinha o prazer lúdico dos melhores cronistas que esculpem cada frase até o êxtase de parecer perfeita. 

Com uma invejável coleção musical no hard disk cerebral, sempre tinha a melodia adequada ao momento que vivia com seus amigos. A sagacidade para interpretar o sentimento das pessoas de todas as camadas sociais explica a liderança de sua coluna ao longo de décadas, com aquelas sacadas geniais que eram a alegria dos seus amigos e a amargura dos seus desafetos.

Odiava ser contestado, mas amava a polêmica que essa divergência provocasse. Sem nenhuma preocupação com o politicamente correto, despertava uma antipatia instantânea nas pessoas que não tinham oportunidade nem paciência de conhecê-lo com profundidade e desperdiçavam, então, a chance de conviver com um tipo despojado, amigo dos amigos, e um coração tão mole que chorava com qualquer história que envolvesse um mínimo de emoção.

Mais de uma vez em conversa comigo, interrompia o papo para anotar uma frase qualquer que seria encontrada numa de suas crônicas futuras, essa que é uma característica desses catadores de ideias.

Foi meu paciente durante muitos anos, desde uma época em que pareceu sincero seu interesse em parar de fumar, um vício que o perseguiu e destroçou ao longo de 65 anos, até o final da vida, marcada pela resignação com que enfrentou todos os cânceres atribuíveis ao cigarro, sem se lamentar. Em consultas periódicas, sempre puxava o assunto de como fazer para interromper o tabagismo, e então ouvir falar de todos os riscos e ameaças tenebrosas. 

Um dia, tendo percebido que havia um certo masoquismo naquela solicitação, resolvi inverter o cenário, e passei a relatar todas as virtudes da nicotina “uma droga maravilhosa, estimulante da atividade cerebral, tranquilizadora, euforizante, antidepressiva, capaz de, em menos de 90 segundos depois da primeira tragada, acender um foco luminoso na área do prazer, e que além disso...”. O Sant’Ana me interrompeu e disse: “Tu tá me sacaneando?”. Respondi: “Acho que sim!” Então, ele me abraçou e disse: “Por isso que eu gosto de ti!”.

Foi sempre um entusiasta dos transplantes de órgãos, e várias vezes conversou com pacientes transplantados e se encantou com suas histórias. Muito pela emoção que essa população lhe provocava, participou de todas as campanhas apoiadas pela RBS, no que entendia como uma missão de responsabilidade social da qual não poderia se omitir.

Quando Não Pensem por Mim, meu primeiro livro de crônicas, ficou pronto, pedi ao Sant’Ana que escrevesse o prefácio, e recebi um texto maravilhoso que me encheu de orgulho, porque eu não estava nem um pouco interessado em admitir o tamanho dos exageros naquela quantidade de adjetivos. 

Quando cheguei para a primeira sessão de autógrafos, ele já estava lá, sentado, com uma cara debochada. Ia iniciar o agradecimento pela sua presença, mas ele me interrompeu: “Não se precipite, estou aqui apenas para evitar a frustração dos inúmeros leitores que virão somente para abraçar o autor do maravilhoso prefácio!”. E ficou lá, com aquele risinho enviesado, de caneta na mão.

Soube depois que ele e o Nílson Souza foram os grandes proponentes da minha efetivação como cronista semanal do caderno Vida, mas, antes disso, várias vezes cedeu seu espaço sagrado na penúltima página de ZH (que ele chamava carinhosamente de “meu canhão”) para publicação de textos meus. Estas oportunidades de exposição me ensinaram que o “meu canhão” não era nenhum exagero. Um dia, quando tentava lhe agradecer por estas gentilezas, ele me interrompeu: “Não esqueça de considerar que talvez eu simplesmente estivesse sem assunto naqueles dias!”.

O Sant’Ana morreu devagar, e é provável que isto atenue, agora, a tristeza pela sua morte, mas, ao longo prazo, no coração dos seus amigos, ficará pulsando a dor da saudade.