sábado, 15 de julho de 2017



15 de julho de 2017 | N° 18898
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

  • À CATA DOS NOSSOS PEDAÇOS

    Um componente extremamente limitante no aprendizado do novo é o medo de errar, que pode ser disfarçado num debate coletivo, mas se revela inteiro na inquisição individual. Pergunte a um aluno qualquer coisa na frente da turma e ele, pressionado, por mais simples que seja a questão, só pensa em livrar-se do fardo estressante por meio do caminho mais curto, o do não sei.

    Quando o professor aceita a desistência, sem insistir, está se omitindo de ensinar duas lições importantes: que aprendemos mais corrigindo erros do que colecionando acertos fortuitos, e que a escola é o lugar onde errar causa menos danos.

    Ensinar alguém é prepará-lo para as escolhas que, certas ou erradas, marcarão o destino do indivíduo que se lança à vida, muitas vezes tendo como única arma o desejo de acertar.

    Muitos estudantes de Medicina fogem da alta complexidade, em que a margem de erro cresce exponencialmente pela instantaneidade da decisão e a chance de reparação é menor.

    Só esta percepção já é suficiente para espantar a maioria dos alunos que prefere se refugiar no trivial, que gratifica pouco, mas em compensação, não assusta nem castiga ninguém.

    Se a alta complexidade envolver alguma emergência, a ansiedade é ainda maior, e muitas vezes eclode sem considerar que o pobre paciente pode estar desperto o suficiente para captar a dúvida médica, esta que é a mais massacrante das percepções de quem esteja ameaçado de morte.

    O Rafael tinha ao redor de 20 anos, o cabelo comprido, a cara bonita e uns olhos enormes, provavelmente ampliados pela descoberta súbita de que a morte podia ser real, ainda que duas horas antes parecesse a coisa mais improvável do mundo. A última lembrança tinha sido a acelerada para aproveitar o sinal amarelo, a batida lateral que fizera o carro rodopiar e o volante que assumira vontade própria e começara a girar loucamente.

    Depois, não lembrava mais nada até chegar nesta sala com luz em demasia e uma sensação de umidade nas costas, de onde a mão esquerda voltou vermelha. Como não sentia nada, fantasiou que o sangue devia ser de outra pessoa.

    Percebendo que estava consciente, com o pânico na vitrine daqueles olhos enormes, apressei-me em explicar-lhe que este estágio do atendimento era muito importante porque estávamos determinando as prioridades para que ele ficasse bem. Ele, então, estendeu-me a palma ensanguentada e implorou: “Esta mão é a única parte do meu corpo que eu estou sentindo. Podes tomar conta dela, que é prioridade para mim?”.

    É difícil cuidar dos pedaços de um corpo destroçado e simultaneamente preocupar-se com o que o dono dele esteja pensando.

    Mas quem disse que ser médico seria fácil?