sábado, 29 de julho de 2017


29 de julho de 2017 | N° 18910
LYA LUFT

Antes que os enquadremos

O mundo anda complicado, o Brasil idem. Então resolvo dar ao leitor um brinde carinhoso, logo depois do Dia dos Avós (sim, eu curto essas datas), em que meus sete netos e netas me visitaram – em pessoa ou pelo cyberspace, de várias partes do mundo.

Um menino e sua mãe voltavam das compras no ônibus quase vazio. Ele segurava no colo o presente cobiçado: um microscópio “de verdade”, dado pelo pai, mas a mãe fora com ele comprar. Tinha um ar sonhador, e de vez em quando passava a mão no pacote:

– Parece mentira, né, mãe? – estava encantado, olhar de um azul indescritível. – Mãe, que igreja é essa?

– Nossa Senhora Auxiliadora.

– Por que tem tanta Nossa Senhora? Não era só uma?

– É uma, sim, filho, mas ela tem muitos nomes.

– E o Nosso Senhor é São Pedro, né?

– Não, é Jesus, ora. Quem se casou com ela foi São José. São Pedro era amigo de Jesus – a mãe suspirou: não praticar muita religião dava nisso.

– Ah... e por que o José não é o Nosso Senhor, se era casado com Nossa Senhora? – a mãe foi ficando um pouco inquieta, o ônibus agora atento.

– Acho que é porque Jesus e Nossa Senhora são mais importantes, filho.

– Mas o São José não era o pai dele?

– Não era de verdade, o pai dele era Deus. São José foi o pai adotivo.

– Então Jesus não nasceu da sementinha do São José? – o silêncio no ônibus já meio vazio parecia imenso. O menino falava em voz alta e clara, pra ele era tudo natural, assim ensinavam em casa.



– Não, filho, Deus fez brotar a sementinha direto em Nossa Senhora, foi um milagre.

– Ué, então não foi como nas pessoas? – a mãe se fez de distraída, mas o menino pensava concentrado e não ia desistir. – Mãe, como é que antigamente, beeeeem antigamente, as primeiras pessoas sabiam como se fazia pra ter neném, se ninguém tinha ensinado a elas?

– Ora, filho, essas coisas a natureza ensina.

– Mas a natureza não é pessoa pra ensinar a gente...

– Quer dizer, quando a gente cresce, aprende por si.

Aí ele muda o assunto:

– Mãe, olha, nessa placa estava escrito Rua Mozart! Eu acho que ele mora aqui!

– Ele quem?

– O Mozart, mãe, ora. Quem ia ser?

– Não, filho, ele viveu na Europa.

– Ah é? Até achei que era nos Estados Unidos, porque as pessoas mais importantes do mundo inteiro moram lá.

– Nada disso! Você não está aprendendo piano? Muitos dos músicos mais importantes, e filósofos, e escritores, moram na Europa.

Ele reflete. Depois, incansável perguntador (como a mãe fora em menina),volta à carga:

– Mãe, o que é mesmo a gente ser um filósofo?

– Uma pessoa que pensa muito. Pensa por todo mundo. Ensina a gente a pensar.

– Ah... Meu irmãozinho pensa muito, será que ele é um filósofo?

– Filho, acho que sim, mas todas as crianças são meio filósofas – não acrescentou: “Antes que os adultos as enquadrem”.

Finalmente desembarcaram. O menino retomou seu ar sonhador, ainda segurando o pacote:

– Mãe, como eu tenho um pai bom, né? – e logo acrescentou: – Mãe também, claro.