sexta-feira, 21 de julho de 2017



21 de julho de 2017 | N° 18903
Paulo Sant’Ana

Risos e lágrimas em um adeus inesquecível

Despedida a Paulo Sant’Ana reuniu “amigos e alguns inimigos arrependidos”, como o próprio cronista desejou certa vez, em uma celebração que reverenciou a trajetória do comunicador, do torcedor do Grêmio, do polemista, do boêmio e do homem que por mais de 40 anos ocupou um lugar especial entre os gaúchos 

“Quando eu morrer”, escreveu certa vez o jornalista Paulo Sant’Ana, “quero à beira da sepultura todos os meus amigos e alguns dos meus inimigos arrependidos. Depois dos risos e lágrimas, voltem para casa e nunca mais se esqueçam de mim”.

Talvez nem todos os amigos e inimigos arrependidos tenham conseguido comparecer à Arena para o velório de Francisco Paulo Sant’Ana, morto na noite de quarta- feira aos 78 anos, ou ao Cemitério João XXIII, onde desde o final da tarde de ontem repousa seu corpo. Mas, depois de todo o riso e toda a lágrima, ninguém jamais se esquecerá de um dos maiores cronistas já nascidos no Rio Grande do Sul.

Cronista, na verdade, é uma descrição módica do comunicador genial, gremista fanático, polemista nato, fumante irredutível, cantor, amante e amigo apaixonado que cativou um Estado inteiro durante quase 50 anos de carreira em rádio, TV, jornal e internet.

Como autor da coluna diária que manteve na penúltima página de ZH – e condicionou milhares de leitores a percorrerem o jornal de trás para a frente – debruçou-se sobre a vida íntima e pública de sua época. Escreveu sobre amor, ciúme e amizade, lugares e pessoas, mas também serviu de porta-voz às agruras do cidadão comum às voltas com falta de remédios ou moradia digna.

Em razão dessa versatilidade, deram adeus a Sant’Ana fãs anônimos e célebres, gremistas e colorados, gente de todos os sexos, credos e idades. Mais de 5 mil de seus fiéis leitores, espectadores e ouvintes passaram pela Arena, onde o caixão permaneceu coberto por uma bandeira tricolor e um cigarro – duas paixões perenes do comunicador. O carroceiro Teófilo Rodrigues Motta Júnior, personagem de um texto publicado há nove anos, fez questão de se despedir pessoalmente.

– Ele é um marco de Porto Alegre – afirmou Teófilo.

Reconhecimento pelo vínculo comunitário

Autoridades, esportistas e ex-colegas de trabalho se uniram às manifestações de pesar.

– Mais do que jornalista e torcedor do Grêmio, Paulo Sant’Ana era um personagem do nosso Estado. Íntimo de todos nós – declarou o governador José Ivo Sartori.

– Meu sucesso no Grêmio eu devo muito ao Sant’Ana. Ele brigava com o mundo para que eu jogasse – reconheceu o ex-jogador e atual técnico do clube, Renato Portaluppi.

O presidente do Grupo RBS, Eduardo Sirotsky Melzer, valorizou o legado do comunicador que atuou por mais de quatro décadas em veículos da empresa:

– Ele representava os anseios da sociedade. Fez isso com brilhantismo, humor, energia, mas acima de tudo com a responsabilidade que o jornalismo sério merece. O Sant’Ana deixa um legado de paixão pelo que se faz, de amor pela comunicação e vínculo com a comunidade.

Amor pelo Grêmio levou ao jornalismo

O jornalista entendeu como poucos a alma das ruas porque também viveu como poucos. Nascido em família pobre, perdeu a mãe com apenas dois anos e recebeu do pai educação rígida, por vezes cruel. Foi vendedor de jornal, feirante, aspirante a poeta, inspetor e delegado de polícia. Fazia participações esporádicas em programas de rádio como torcedor gremista até que, em 1971, foi contratado como colunista de esporte de ZH e comentarista da Rádio Gaúcha. Meses depois, se integraria também ao recém-criado Jornal do Almoço, da RBS TV.

Durante todo esse tempo, dedicou-se ainda à boemia e a cantar pérolas da música brasileira. Tanta personalidade tinha que criou para si até um alter ego: Pablo. O que unia Paulo e Pablo era a devoção às emoções. Escreveu: “Se o destino tiver que escolher entre me avariar o cérebro e o coração, que me preserve o coração e dane-se meu cérebro. Mil vezes ser um encefalopata do que um cardiopata. Prefiro vegetar como um idiota, mas tonto de amor”.

Nos últimos anos, abatido pelo combate a tumores e pelo Alzheimer, já não conseguia trabalhar, mas o destino concedeu-lhe o desejo de manter o afeto pulsando no peito até a última hora.

– A última lembrança que tenho é ele me pedindo um beijo. Dei um beijo e ainda deixei uma marquinha de batom na bochecha – conta a mulher, Inajara Silva, ao recordar o último encontro, na terça-feira.

O coração, sobrecarregado de tanta emoção, tanto Grêmio, tanta provocação espirituosa aos colorados, tanto cigarro e tantas crônicas memoráveis sobre a vida cotidiana e os grandes temas da existência, seguiu batendo até a noite de quarta-feira, quando Sant’Ana sentiu-se mal e não resistiu a uma parada cardíaca.

Paulo, ou Pablo, foi sepultado às 18h15min de ontem ao som de Felicidade, de Lupicínio Rodrigues, em jazigo com vista para o Estádio Olímpico, rodea- do de amigos e inimigos arrependidos. Depois dos risos e lágrimas, voltaram para casa e nunca mais se esquecerão de Paulo Sant’Ana.

marcelo.gonzatto@zerohora.com.br