sábado, 22 de julho de 2017



22 de julho de 2017 | N° 18904 
L.F. VERISSIMO

Juízo Final

A menina ficou muito impressionada quando ouviu dizer que, no dia do Juízo Final, os mortos sairiam das suas covas para serem julgados. Estava na Bíblia.

A menina não entendeu. Todos os mortos sairiam das suas covas para serem julgados? Todos, na história do mundo?! Ela nem tentou calcular quantos mortos seriam. O que vinha depois de trilhão?

Outra coisa: os mortos voltariam para as suas casas, para os seus parentes? A menina tentou imaginar sua casa cheia de antepassados mortos. Não haveria lugar para todos. Nem comida. E nem dava para pensar na fila do banheiro.

Mas havia o lado bom da história. A menina reencontraria seus avós. E tia Isolda, sua madrinha querida. E o primo Zeca, que ela adorava! Havia um consenso na família de que o primo Zeca iria diretamente para o inferno depois da sua morte num acidente de moto. Mas a menina o adorava. E decidiu que, quando viessem buscar o primo Zeca para seu julgamento final, ela o esconderia num armário, nem que tivesse de expulsar outros parentes mortos lá de dentro.

Aquilo era outra coisa que intrigava a menina. Juízo Final. Como seria o julgamento? O juiz era Deus, claro. Não era Deus que decidia o destino das pessoas? Que tinha o poder de condená-las ou inocentá-las, como quisesse?

– É – disse o pai, quando a menina perguntou. – Como o Moro. A menina também não entendeu aquilo.

Se não era Deus que decidia, quem era? Nos julgamentos haveria advogados, testemunhas, essas coisas que a gente vê nos filmes? Quem fosse condenado voltaria para a cova, sem direito a sair de novo? E quem fosse inocentado, ganharia o quê? A Bíblia dizia que Juízo Final era final mesmo. Era o Apocalipse, o fim de tudo. O futuro do mundo, para vivos e mortos, era o vazio. Era nada. Então, para que julgamento?

A menina decidiu não pensar no nada. Preferiu pensar no lado bom do Juízo Final, quando ele viesse. Nas oportunidades que ela teria para conversar com seus antepassados. Bastava escolher a época. Com antecedentes da idade da pedra a conversa seria difícil, não falariam a mesma língua. Mas, com um parente do século 18, por exemplo, seria divertido. A menina mal podia esperar seu reencontro com a tia Isolda. Como teriam assunto!