sábado, 22 de julho de 2017


22 de julho de 2017 | N° 18904 
DAVID COIMBRA

Os odiadores

Escrevi muito rapidamente, dias atrás, sobre uma geração de comunicadores do Rio Grande do Sul: o Ruy, o Sant’Ana, o Lauro, a Ana Amélia, o Lasier.

Eles militaram num tempo em que o jornalismo era completamente diferente do que é hoje. Por vários motivos, mas, sobretudo, por causa da internet. Nunca, na história do mundo, um invento alterou as relações humanas com tamanha velocidade como a internet.

Algumas profissões deixaram de existir por causa da internet, outras entraram em processo de extinção. A de jornalista se transformou por completo. Como será que esses antigos profissionais lidariam com o advento dos haters?

Os haters são um fenômeno social ainda não estudado suficientemente.

Haters. Odiadores.

Chamar alguém de “odiador” parece, por si, odiento, mas na verdade não é. Porque expressar o seu ódio faz bem a essa pessoa. Ela se sente superior quando odeia algo, principalmente se este algo é amado por outras pessoas. É como o comentarista de futebol que elogia o volante obscuro. O centroavante faz dois gols, o meia brilha com assistências escorreitas, o ponta dá dribles de ilusionista, mas o comentarista diz que quem ganhou o jogo foi aquele volante em quem ninguém prestou atenção. Quer dizer: o comentarista viu o que ninguém mais viu, ele sabe mais, ele é superior.

Um odiador ama odiar o que todos amam. Assim, ele se destaca da planície. Mas odiar em grupo também é divertido. Você se torna parte de um movimento. O mais legal é quando o objeto do ódio acusa o golpe. Assim: alguém diz ou faz uma besteira qualquer. Ou nem precisa: basta dizer ou fazer algo que é interpretado como uma besteira. 

Aí é lindo: a comunidade de odiadores começa a se manifestar, a sovar a vítima, a amassá-la, a reduzi-la a um verme, e o ódio vai crescendo, vai crescendo, até que a vítima não consiga mais se defender e, humilhada, rasteje e peça perdão público. Isso faz cessar um pouco a sanha dos odiadores, eles já conseguiram diminuir aquele pobre coitado. Mas só um pouco. Alguns continuam a bater deliciosamente, afirmando que não adianta pedir desculpas depois de ter feito algo tão repulsivo. Na verdade, a surra só vai terminar quando surgir outro alvo.

Neste caso de ódio grupal, os odiadores podem ser pessoas físicas e jurídicas, categorias profissionais e inclusive gêneros inteiros – as mulheres se transformaram em odiadoras maravilhosas, organizadas, sistêmicas, muito eficientes.

Como se defender do ódio?

Não há como. O ódio é feito um ataque com Pelé e Garrincha juntos. Em algum momento, a bola entra, se você estiver exposto a ele. Mas você pode desenvolver seu autocontrole, e aí se elevará a um patamar especial.

Isso é antigo como os séculos. O que atesta a história de Cibele.

Cibele foi uma das primeiras grandes divindades da civilização, senão a primeira. Era uma deusa asiática, consagrada pelos gregos e incorporada pelos romanos, que a chamavam de Magna Mater, “A Grande Mãe”.

Adorar a mãe como deusa faz parte da natureza humana, porque a maternidade é o símbolo da vida.

Há pouco mais de cem anos, foi descoberta na Áustria uma estatueta de 11 centímetros de altura, a famosa Vênus de Willendorf. É a representação de uma mulher grávida, com os seios intumescidos de leite. A imagem da fertilidade. Cientistas calculam que a pequena obra-prima tenha sido esculpida entre 22 a 25 mil anos atrás. Ou seja: antes mesmo da civilização, a Magna Mater já era reverenciada.

Foram os hebreus que lançaram ao mundo o deus masculino e, mais do que masculino, único. E d’Ele, Jeová, partiram as três religiões monoteístas que hoje dominam a Terra. Mas esse deus-pai acabou suavizado, no Ocidente, pela figura benévola e consoladora da Virgem Maria. Maria, de certa forma, é A Deusa Mãe rediviva.

Mas o que queria contar era sobre o culto à Cibele original, greco-asiática. Um homem, para ser escolhido sacerdote de Cibele, tinha de passar por várias provas. Entre elas, a de cruzar por uma longa ponte tomada por anciãos que ficavam sentados com as costas apoiadas em ambos os parapeitos. O iniciado caminhava lentamente entre eles e eles... o insultavam. Bradavam críticas verdadeiras e falsas, ofendiam-no, censuravam-no, riam dele. Ele precisava chegar ao outro lado da ponte com a serenidade intocada. Se conseguisse, estava aprovado.

Poucos eram aprovados. Há 2.500 anos, os sacerdotes de Cibele já conheciam o poder corrosivo do ódio na alma humana. E o usavam. E, decerto, divertiam-se com isso. Os odiadores se divertem. Que continuem se divertindo e aliviando suas vidas. Mas não comigo, certo? Eu, aqui, prefiro não passar por essa ponte e não ser sacerdote de coisa alguma. Amores, amigos e risos me interessam mais.