quarta-feira, 12 de julho de 2017



12 de julho de 2017 | N° 18895 
DAVID COIMBRA

Nós viemos de longe

Como é que você, tão defensor da democracia, reagiria a um governo golpista, mas golpista de verdade, que ascendeu ao mando por meio da força, não golpista de marketing, um governo que, tendo tomado o poder, fechou o Congresso e as Assembleias Legislativas, cassou governadores, aboliu a Constituição e administrou por decreto, como você reagiria a esse governo, se existisse?

Existiu. Foi o de Getúlio Vargas, de 1930.

Pois ninguém reagiu a essa ditadura espúria, com exceção de São Paulo. Dois anos depois de Vargas governar o país como um rei absolutista, os paulistas começaram a fazer manifestações. Numa delas, quatro estudantes foram assassinados pela repressão. A partir daí, houve uma rebelião, chamada Revolução Constitucionalista, que é a Guerra dos Farrapos deles.

Se você é gaúcho, você deve ter torcido por Vargas, também ele gaúcho, de bombacha e tudo. Mas os paulistas estavam certos. Eles defendiam a democracia.

Vargas venceu, como se sabe. Dois anos depois, até apresentou uma Constituição, para amansar os ânimos revoltosos. Era manobra diversionista. Em 1937, ele deu o golpe em seu próprio golpe e lançou nova Constituição, muito mais autoritária, chamada de “Polaca”, por se inspirar na polonesa. Permaneceu 15 anos no poder.

Você, democrata que é, diria que um povo se sentiria aliviado ao livrar-se de um ditador desses.

Mas não é o que acontece na prática.

Na prática, uma ditadura é como um pai abusivo: produz marcas que vão durar por toda a vida. Até meter uma bala calibre 32 no peito, em 1954, Vargas espalhou seus tentáculos pela sociedade e fundou a divisão que até hoje caracteriza o país.

Brizola dizia: “Nós viemos de longe...”. E é verdade. As esquerdas brasileiras são herdeiras de Vargas e do seu autoritarismo. O sonho dessas esquerdas é repetir o regime de Vargas. É o mando sem freio nem pejo.

Só que o problema não se resume aos descendentes do ditador. Porque uma ditadura deforma também a oposição. A última oposição realmente democrática a Vargas foi a Revolução Constitucionalista de 1932. Depois disso, os inimigos de Vargas apenas sonhavam em ser Vargas. E foram. A ditadura militar de 1964 é uma resposta ao varguismo tardio de Brizola e Jango. Sendo o extremo contrário a Vargas, igualou-se a ele, provando que o mundo realmente é redondo.

Quando Fernando Henrique anunciou o fim da Era Vargas, nos anos 1990, estava sendo otimista demais, tanto quanto os constitucionalistas de 1932, que duraram menos de três meses. O varguismo agora vivia no PT e o antivarguismo nos saudosos da ditadura militar.

O varguismo e o decorrente antivarguismo nos escravizam. Um grupo não tolera o outro no poder. Não é feita oposição: é feita sabotagem.

Isso no andar de cima, nas lideranças políticas. No andar de baixo, na população, o varguismo e o antivarguismo criaram a crença de que um salvador da pátria é uma possibilidade. As pessoas não esperam o seguimento normal da democracia; esperam o líder forte, que resolverá os seus problemas.

Quando nos libertaremos disso? Talvez nunca. Como disse, traumas de infância podem ser por toda a vida.