sexta-feira, 16 de outubro de 2020


16 DE OUTUBRO DE 2020
EDUARDO BUENO

Vai pra Cuba 

Trasanteontem (não se deve abrir matéria com "ontem", imagine então com "trasanteontem" - mas isto é uma crônica, então, como ia dizendo:), quando o Peru deu mole, o Brasil virou o jogo e o narrador mandou "um abraço para o presidente Bolsonaro", decidi trocar de canal. E fui para Cuba - com os Rolling Stones.

Sim, zapeando dei de cara com Havana Moon, o memorável show que os Stones deram em Cuba, em março de 2016. Quando vi, lá estava eu, com Keith e Mick, na ilha da rebeldia, honky tonk women e street fightin men evocando demônios ao ritmo da rumba, encharcados em rum, sem rumo e sem prumo, brown sugar virando melaço, tingindo tudo de preto, fazendo vodu: cabeças rodopiando.

No olho do furacão de Jumpin? Jack Flash, vi desenrolar-se toda a saga de Cubanacán, suas bonanças e tormentas. Os tainos, nativos em sua terra (cuba) fértil (nacán), na fecundidade ancestral, até Colombo, o portador de Cristo, trazer a cruz, a espada e os vírus, num sopro de morte e de dor. A cana sugando a seiva da terra, rangendo nos engenhos, o doce açúcar produzindo tanto amargor, tribos inteiras fenecendo feito moscas, negros escravizados purgando e pagando pecados que não cometeram. O estalido da chibata, os gemidos da senzala e dos amores proibidos, o fausto da elite criolla, suas muitas rendas, sob o sol e os dosséis de La Habana. Furacões vergando as palmeiras.

Os alísios trazem os piratas do Caribe - ho, ho, ho e uma garrafa de rum. As tumbas e as ramblas, o tabaco perfumoso enrolado em coxas grossas morenas, areias faiscantes ao luar. Soam então os tambores da insurreição e eclode a "guerra necessária" de José Martií, mártir, revolucionário, poeta. As letras e as armas: o reino deste mundo de Carpentier, o "son" de Nicolás Guillén, o cabrón Cabrera Infante. Febres tropicais e intervenções dos EUA levam o tirano Fulgêncio Batista ao poder e seus amigos mafiosos gringos fazem da ilha um cassino, um puteiro e o quintal da United Fruit.

Mas o Haiti não é aqui e Che e Fidel sobem e descem a Sierra Maestra, anunciando no ano-novo um novo mundo, que logo envelhece e fenece na Baía dos Porcos, na crise dos mísseis, no calor da Guerra Fria e guantanamera vira Guantanamo. Agora, os prédios antigos gotejam seu suor de pedra, Cadillacs queimam óleo no Malecón, há sangue seco no paredón, êxodo nos barcos e boias, gusanos e tiburones. A comédia humana sempre foi tragédia, só que aqui é a trilogia suja de Havana. Mas a buena onda do Buena Vista Social Club ressoa o mambo, o merengue e a salsa, entre daiquiris e mojitos. Hoje e sempre.

Eles gritam: "Vai pra Cuba". Sabe que não é má ideia? Com os Stones, sem Fulgêncios e sem Castros - mas também sem os cascos dessa gente que nunca se inebriou com Cuba Libre.

EDUARDO BUENO

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