sábado, 24 de outubro de 2020


24 DE OUTUBRO DE 2020
FLÁVIO TAVARES

O vinte e oito 

Existem amigos que estão acima da amizade e são parte de nós mesmos. Não são nossa extensão porque nunca chegamos a ser o que eles foram, como Carlos Amaral Freire, que nos deixou há uma semana.

Gaúcho de Dom Pedrito, o conheci como colega de aula no Colégio Júlio de Castilhos em 1950, quando ele iniciava a caminhada que o tornou o maior linguista do mundo. Carlinhos não era apenas um poliglota que dominava idiomas com total facilidade, mas um linguista completo que penetrava no idioma e conhecia sua literatura e, até, os hábitos e cores ocultas dos falantes. Modesto, não se gabava nem se exibia e, por isto, é modelo às novas gerações.

Quando ganhou a primeira bolsa numa universidade estrangeira, em Madri, na Espanha, ao final dos anos 1960, era conhecido como "el veinte y ocho", ou "o vinte e oito", por falar 28 idiomas. Anos depois, quanto me contou do apelido, perguntei quantos idiomas dominava "agora", naquele momento.

- Todos! - respondeu, das línguas indígenas ao árabe, hebraico, chinês e japonês, mais os idiomas indo-europeus. Uns 150 no total. Ia estudar o aramaico dos tempos de Cristo, "por curiosidade", pois não era religioso.

Em 1954, presidindo a União Estadual de Estudantes, levei-o comigo à reunião do Conselho da União Internacional de Estudantes, na Universidade de Moscou, e dispensei os intérpretes. O russo fora o primeiro idioma não corriqueiro que ele dominou, abrindo porta às línguas eslavas.

Mas, por saber russo, após o golpe militar de 1964, foi demitido da Refinaria Alberto Pasqualini (onde ensinava inglês) e apontado como "subversivo comunista". Mesmo assim, depois dirigiu o setor cultural do Brasil no Uruguai e na Bolívia. Em La Paz, aprofundou-se nas línguas quéchua e aimara e mostrou as semelhanças fonéticas com o georgiano, lá no Cáucaso europeu, descoberta que revolucionou a linguística e as migrações do mundo antigo. "Até a cor roxa dos vestidos aimaras é similar à da Geórgia", explicou-me.

Sem jamais exibir-se, Carlinhos morreu em Canela, onde morava, quase esquecido. Imitou assim seu ídolo maior, o tcheco poliglota Francisco Valdomiro Lorenz, que difundiu no Brasil o idioma esperanto e morreu em pobreza extrema no interior gaúcho.

Babel de Poemas, livro que Carlinhos traduziu de 60 línguas (de Shakespeare a poetas macedônios, romanches, armênios e, até, suaílis e bascos), é o legado maior que nos deixou. Supera, até, ter sido apontado pela Universidade de Cambridge como um dos 2 mil intelectuais mais notáveis do século 21.

Jornalista e escritor - FLÁVIO TAVARES

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