quarta-feira, 21 de outubro de 2020


21 DE OUTUBRO DE 2020
MÁRIO CORSO

O fetiche do papel higiênico 

Lembram das primeiras notícias e dos nossos movimentos iniciais frente à pandemia e à quarentena? Parece que faz muito tempo, mas são poucos meses, sinal de que vivemos dias duros e densos.

O comportamento mais bizarro da primeira hora foi o dos carrinhos de supermercado transbordando de papel higiênico. O fato chamou atenção de pesquisadores que queriam entender as razões dessa que é chamada "compra de pânico". Empresas relataram aumentos de venda de até 700%. É um volume que dá o que pensar. Como que a psicanálise entendeu essa urgência?

Uma das questões do desenvolvimento pessoal que nos deixa marcas é como aprendemos o controle esfincteriano, vulgo largar as fraldas. Aliás, este é um sinal inequívoco de crescimento. Mais tarde, o limpar-se sozinho coroa outra fase de autonomia. Mas tudo no humano é sempre cheio de curvas, idas e recuos. Alguns de nós ficam particularmente marcados por essa fase, e isso aparece nos hábitos.

Por isso mania de limpeza é tão comum e tantas pessoas têm seus rituais, seus nojos e suas fobias. O medo a barata se encaixa aqui, por exemplo. Afinal é um animal sujo, vive no esgoto e conspurca nossa casa. Por que outra razão teríamos tanto medo dela? Afinal, ela é parente de tantos insetos semelhantes, como o cascudo, outro ortóptero, que não desperta o menor temor.

Quando surgiram as primeiras notícias da pandemia, tudo era confuso. Nossa única certeza é que provinha de alguma forma de contágio. Esse foi o gatilho e, quando acende a luz do perigo, nossa primeira resposta é instintiva. Mecanismos primários de defesa são ativados. Nestes, o contágio é associado inconscientemente à sujeira, numa gramática imaginária entre a impureza e a angústia.

Ora, qual que é a coisa mais suja que existe? Qual o pai de todos os nojos? O cocô, especialmente o humano. E quem seria o protetor contra ele? Nosso bom amigo o papel higiênico. Pessoas com conflitos com a sujeira reagiram e interpretaram ao seu modo a ameaça do contágio, depois foram às compras.

A brancura e maciez do papel, semelhante ao algodão dos curativos, implementa uma aura de purificação. Ele nos ajuda a remover o sujo, o perigoso, o contagiante. Afinal, no raciocínio do impulso, limpeza é saúde. Algo como: papel higiênico, livrai-nos do mal!

A dúzia de fardos era proporcional ao tamanho do medo. Os estocadores de papel compravam escudos.

Dessa fase já passamos. Não é o papel higiênico que irá nos salvar. Mas o medo persiste, ativando outras defesas arcaicas e paranoicas. No momento, no campo da fantasia, atravessamos uma temporada de crenças em medicamentos mágicos, na negação de que a doença exista ou na insensata busca de culpados.

MÁRIO CORSO

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