quarta-feira, 28 de outubro de 2020


28 DE OUTUBRO DE 2020
O PRAZER DAS PALAVRAS

E segue a pandemia

Continuo a esclarecer, abaixo, as dúvidas que as aulas on-line despertaram nos adultos atentos que estavam por perto. Como ninguém quer que seu pimpolho receba alimento de má qualidade, compreendo muito bem o zelo desses pais; confesso que eu mesmo vou conferir no Google, quando posso, as informações que minhas filhas deixam vazar na hora do almoço. Ter dúvida, portanto, é legítimo e aconselhável, mas posso assegurar que, em todos estes casos, a forma empregada pelo professor é a mesma que eu empregaria. Como nas edições anteriores, o nome e a localidade de origem foram omitidos.

1) Próximo, próxima - "No material que a professora mandou baixar, havia um roteiro de visita a uma praça importante da cidade. Além de vários pontos para observar, ela mandou prestar atenção especial à estátua que fica próximo à igreja. Saí há muito tempo do colégio, mas se é estátua, não deveria ser próxima?"

Resposta - Muitas palavras podem pertencer a duas ou mais classes gramaticais diferentes. Para entender o que isso significa, sugiro imaginar uma pessoa que tenha duas cidadanias e, por consequência, possua dois passaportes. Os direitos e deveres relativos a um dos passaportes não serão os mesmos relativos ao outro. Assim, próximo pode ser adjetivo (próximo ano, próxima vítima, parentes próximos) ou um advérbio (Ela mora próximo daqui). Com o passaporte de adjetivo, ele tem direito a flexionar em gênero e número; com o de advérbio, porém, ele será obrigatoriamente invaríavel. Como fica claro que aqui a professora usou o vocábulo como advérbio, (perto da igreja), ele não desfrutará do prazer de flexionar no feminino ou no plural.

2) Ter/terem - "O texto usado na aula de História dizia que os revoltosos informaram não ter recebido documento algum do Palácio. Professor, não era para ser terem recebido? O verbo deixou de concordar com o sujeito e eu não fui informado?"

Resposta - Numa língua, há regras (atenção: o que segue é uma metáfora!) municipais, estaduais e federais, isto é, regras de diferente hierarquia. O tempo e o uso podem introduzir alterações em todas elas, porque tudo muda, inclusive o Universo, mas é claro que o processo será mais rápido e mais fácil numa leizinha municipal do que numa lei federal. Uma regra ortográfica, por exemplo, pode ser alterada com algumas reuniões de entendidos, alguns chopes e a promulgação de um decreto (assim foi o Acordo de 1943, depois de muitas reuniões na Academia e intervalos no famoso Bar Amarelinho, na Cinelândia). A correta conjugação de um verbo, por outro lado, só vai se alterar com décadas de experimentação por parte dos usuários - como é o caso hoje da 3ª pessoa de adequar, que divide os falantes entre /adéqua/ e /adeqúa/ (fico com esta última).

Agora, a concordância do verbo com o seu sujeito é muito mais do que federal: é constitucional. Levaria séculos para que ela fosse alterada pelo próprio plebiscito do uso; não existe, portanto, a hipótese dela ter sido abolida sem que você tivesse notado... Verbos continuam concordando com o seu sujeito, mas não é disso que se trata aqui. Temos aqui uma locução verbal, um conjunto de dois ou três verbos em que o da extrema direita funcionam como o principal e o outro (ou outros) funcionam como auxiliares. Só o auxiliar mais à esquerda vai flexionar, enquanto o principal deve ficar imóvel, gozando dos frutos do trabalho do outro. Por isso, o correto é "os revoltosos informaram não ter recebido", "eu informei não ter recebido", "tu informaste não ter recebido", "nós informamos não ter recebido" e assim por diante. Eu sei que um verbinho assim dando sopa nos deixa em estado de alerta (como o verbo sempre faz) e ficamos com medo de estar esquecendo a concordância, mas ela não é necessária. Viu só? Ficamos com medo de estar, e não de *estarmos esquecendo.

CLÁUDIO MORENO

Nenhum comentário:

Postar um comentário