sábado, 24 de outubro de 2020


24 DE OUTUBRO DE 2020
COM A PALAVRA

AS FEIRAS LITERÁRIAS DEVEM ESTAR ATENTAS AO QUE OCORRE NO MUNDO

JEFERSON TENÓRIO - Escritor, 43 anos

Autor de "O Avesso da Pele" (Companhia das Letras, 2020), entre outros livros, e patrono da 66ª Feira do Livro de Porto Alegre, que terá início na sexta-feira

Jeferson Tenório é mais do que um patrono. É também o símbolo de uma mudança que a Feira do Livro de Porto Alegre quer inaugurar a partir da 66ª edição do evento, que terá início na próxima sexta-feira, dia 30, estendendo-se até 15 de novembro, com atividades online. Autor de três romances, é o mais jovem escritor escolhido para o posto - e o primeiro negro a ocupar a posição. A opção por Tenório demonstra uma tentativa dos organizadores de realizarem uma Feira alinhada com temas do debate público contemporâneo, como racismo e representatividade. E também valorizar o trabalho de quem vem renovando a literatura com qualidade e consistência. Nesta entrevista, Tenório fala de suas expectativas como patrono e compartilha experiências de sua trajetória como professor e romancista.

Como foi receber a notícia ter sido escolhido patrono?

Foi uma surpresa. Em primeiro lugar, pela importância do posto, mas também pelo perfil, que costuma ser de uma pessoa mais velha, com muitos livros publicados. Geralmente também seria uma pessoa branca, de determinada classe social. Porém há tempos a Feira vinha sofrendo algumas críticas, inclusive de minha parte e de vários outros escritores, não só pela questão de representatividade, mas também por sua estrutura dos últimos anos.

Você avalia que é um momento de mudança para a Feira?

As feiras literárias hoje devem estar atentas ao que ocorre no mundo. Não podem fazer uma programação à parte disso. Foi de grande inteligência a organização aproveitar o momento e provocar uma mudança bastante significativa e simbólica, primeiro por ter uma feira online, e depois por ter mesas, convidados e discussões com grande representatividade. Então acho que seria de fato coerente escolher um patrono negro, pois sabemos que, nessas 66 edições, eu seria o primeiro.

Você é também o patrono mais jovem.

Sim. A escolha tem a ver com a qualidade do trabalho, e não necessariamente com a quantidade de livros lançados. Recebi o convite com muita felicidade. Se fosse em outros anos, eu não seria escolhido, devido à estrutura que estava montada, e talvez eu também não me sentisse confortável em ocupar esse espaço dentro de uma estrutura com a qual não concordava. Agora temos uma curadoria muito bem pensada pela Lu Thomé, dentro de um contexto importante e simbólico. Por isso, fico surpreso, mas ao mesmo tempo muito feliz por estar fazendo parte dessa mudança.

Sua escolha como patrono aponta uma busca por representatividade por parte da organização da Feira. mas essa pode não ser uma conquista definitiva. Você não tem receio de que esse espaço possa voltar a ser silenciado?

Quando pessoas negras ocupam determinados espaços pela primeira vez, algumas pessoas dizem que isso não deve ser ressaltado, como se ressaltasse o racismo. E também há quem pense que, por uma pessoa negra ter chegado a esse espaço, o racismo terminou. Isso é muito perigoso. Podemos dar um passo atrás justamente por achar que o jogo já está ganho e não é mais necessário discutir o tema. Avançar no debate é naturalizar pessoas negras nesses espaços. Quero ver chegar o dia em que não será preciso dizer qual é a cor do patrono, mas a cor do patrono ficou 65 anos sem ser dita. Enquanto houver essa discrepância de ocupação de espaço, ainda será importante frisar isso.

Você disse que os eventos literários precisam estar atentos ao debate público. A polêmica em torno da escolha da poeta norte-americana Elizabeth Bishop para a festa literária de paraty (Flip), que gerou o pedido de demissão da curadora, poderia ter sido evitada, caso houvesse esse tipo de atenção?

Com certeza. A curadoria estava alheia ao que ocorria. A escolhida é uma grande poeta, sem dúvida, mas faltou um timing de olhar o contexto e perceber que havia outras demandas. Acredito que, com a pandemia, a Câmara Rio-grandense do Livro (CRL) colocou uma lupa sobre essa estrutura que já não vinha dando certo.

Como se deu sua formação de leitor?

Comecei a escrever antes de ser leitor. Escrevo diários desde os 13 ou 14 anos. Aos 18, escrevi uma novela, com cerca de 200 páginas em folhas de ofício. Mas minhas referências não eram literárias, e sim de novelas televisivas. Então fiz ali um texto muito ruim, mas que lembrava essas novelas que eu assistia. Me torno leitor quando entro para a faculdade de Letras, com 23 ou 24 anos. Não fazia a mínima ideia do que se estudava lá. Ao entrar no curso, fui apresentado a um novo mundo. No primeiro semestre, tive que ler a Odisseia e Dom Quixote em uma disciplina. Rodei. No segundo, entrei com a ideia de que precisava recuperar tudo que havia perdido como leitor.

Foi quando começou a montar sua própria biblioteca?

Sim. Entrei em um frenesi de comprar livros. Virei um rato de sebo. Eu era office boy de um escritório de advocacia. Todo dinheiro que recebia, comprava livros, em vez de pagar a faculdade. Fiquei um ano e meio fazendo isso, até que um dia me chamaram na secretaria e me disseram que eu tinha de pagar o que estava devendo. Então tranquei o curso fiz vestibular na UFRGS. Passei e descobri mais um novo mundo, o da pesquisa, e fui refinando minhas leituras.

Você é a primeira pessoa da família com um curso superior?

Sim. Depois teve minha irmã, que se formou em Fisioterapia. Sou natural do Rio de Janeiro. Vim para Porto Alegre aos 13 anos, com minha mãe. Ela chegou desempregada, depois trabalhou como auxiliar de serviços gerais na Trensurb e como diretora de um creche. Mais tarde, tornou-se cartomante e tem um centro de umbanda.

A religiosidade de matriz africana está presente no seu livro Estela Sem Deus. Hoje, há revisões da história do Brasil e do Rio grande do sul que resgatam o protagonismo dos negros. No entanto, talvez ainda falte uma revisão mais subjetiva, ligada à cultura.

Estela Sem Deus é a busca dessa religiosidade de matriz africana, principalmente no Rio Grande do Sul, onde há inúmeras casas de umbanda. É uma situação bastante exótica, porque as pessoas procuram as casas de religião, mas não gostam de dizer que as frequentam. Isso é algo muito estranho. Minha mãe costuma receber pessoas que pedem a ela para manter sigilo. Isso diz muito do nosso Estado e de como ele olha para a questão da religiosidade. Aliás, esta é uma questão que está para além da religiosidade. É também uma preservação de cultura. Toda a vez que um rito acontece em um terreiro, é a recuperação de uma cultura que foi violentada por tantos anos. É o momento de presentificar essa cultura, que é tão rica.

o Avesso da Pele, Seu mais novo livro, lançado neste ano, vem sendo celebrado por expor como é ser negro no Brasil. Trata-se de um livro sobre racismo?

Não exatamente. É um livro sobre uma relação entre pai e filho, mas que também sofrem essa demanda nefasta de ter de lidar com o racismo. É talvez o livro mais próximo de mim, como uma espécie de alter ego, embora não seja uma autobiografia, nem uma autoficção. Mas há elementos no livro bem próximos de coisas que eu vivi.

Como você, o protagonista do romance é também professor. Como encara o ofício de educador no Brasil de hoje?

Os professores já apanharam bastante em toda essa história da educação brasileira. O Avesso da Pele é uma espécie de homenagem a esses professores que ficaram até o fim. O Henrique é um personagem que está desiludido com a educação, ele acha que passou 20 anos na escola e nada do que fez deu certo. Mas o fato de ter continuado é uma espécie de redenção, ou seja, ele não desistiu. Vejo assim meus colegas, não só os os atuais, mas os que já tive. São pessoas que não desistiram, que são apaixonadas pelo que fazem. Muitos tiram dinheiro do bolso para fazer coisas para os alunos. É uma profissão muito bonita.

Há quem defenda que clássicos da literatura não sejam lidos por terem sido escritos por homens brancos em posição privilegiada. Como revisar criticamente a história e não abrir mão do que ela tem de bom?

A revisão da história literária é superimportante. A gente consegue trazer de volta vários nomes que não estavam sendo lembrados. Mas também não posso esquecer de que, como professor e escritor, minha formação é ocidental. Se fui criado nesse contexto, é natural que eu lance mãe de escritores canônicos, que fazem parte do panteão de escritores ocidentais. A questão é que essa ideia de excluir uma coisa em detrimento de outra é um pensamento burguês do século 19, de não entender que as coisas podem coabitar. E aí eu me aproximo de um pensamento mais africano, da antropofagia cultural, que é absorver o que há de melhor em cada cultura para que a gente possa se fortalecer.

Como fazer isso em uma sala de aula, com alunos do Ensino Médio, por exemplo?

Por que não levar Proust para meus alunos se a reflexão que ele faz sobre memória é tão importante quanto as reflexões que as mitologias africanas também trazem? Por que não colocar esses autores e culturas para conversar? Quando ofereço uma Conceição Evaristo para os meus alunos, trabalhamos a questão da memória presentificada. Quando levo Proust, a memória é uma tentativa de presentificar o que passou. Ver a literatura exclusivamente de um ponto eurocêntrico ou de outro afrocêntrico pode ser limitador. Prefiro criar uma ponte, um diálogo, para produzir uma terceira coisa, que ainda não sabemos bem o que é.

Como é ensinar literatura para os jovens? Você se sente acolhido ao falar de livros com os alunos?

Já fui mais ambicioso, de achar que formaria um grande número de leitores ao trabalhar literatura. Com mais lucidez, hoje percebo que a literatura tem muita concorrência. Tem muita coisa envolvida antes de o aluno chegar a um livro e perceber que há nele algo de importante. Meu trabalho hoje é apresentar aos alunos os livros e tentar tirar o que há de melhor nas leituras. Minha intenção é que o aluno ao menos olhe para a vitrine quando passar por uma livraria, por perceber que ali há algo de importante. É o que ensinei para o meu filho. A gente janta em frente a uma estante e, a cada garfada, ele tenta ler as lombadas dos livros. Embora ele não entenda muito bem, porque tem apenas 10 anos de idade, percebe que há ali algo de especial. Quando estamos na rua e passamos por algum camelô que vende livros, ele diminui o passo e olha. É o que tento fazer com meus alunos.

QUAL É SUA AVALIAÇÃO SOBRE A SITUAÇÃO DOS PROFESSORES NESTE MOMENTO DE PANDEMIA?

Falo de um lugar privilegiado, por dar aula em uma escola particular. Os alunos têm acesso à internet, têm computador, estão bem instalados em casa. É um contexto diferente do professor que está na linha de frente da guerrilha da escola pública. Dentro do meu contexto, é uma adaptação praticamente semanal. A cada semana me adapto a um modo diferente de dar aulas, por enfrentar problemas que não existiam na aulas presenciais. Mas também é importante dizer que essa experiência ajudou a criar um vínculo com algumas turmas que não havia nas aulas presenciais. Conseguimos aprofundar alguns debates que não conseguíamos antes. Por outro lado, há turmas com pouca gente interagindo. O que eu quero dizer é que a sensação de "vou dar a minha aula e, se eu conseguir que um ou dois prestem atenção, já estou feliz" continua.

Porto Alegre é festejada por ter uma cena literária ativa, com muitos escritores, editores e oficinas. Qual é sua opinião sobre esse cenário?

Nosso meio passou por uma ampliação no que diz respeito aos perfil dos escritores que ganham projeção nacional. A gente tinha, no final da década de 1990 e no início dos anos 2000, determinados tipos de autores, de determinada cor e classe social. Todos muito bons, sem dúvida. De 2010 em diante, começaram a aparecer autores que fogem a esse perfil, mas também têm grande qualidade. Houve um enriquecimento, com novas experiências literárias. E isso é o mais importante, a possibilidade do leitor ter acesso a mais pontos de vistas ficcionais, que de certo modo também contam a história do Rio Grande do Sul.

Pode dar exemplos nesse sentido?

Quando eu tenho um livro do José Falero como o Vila Sapo, tenho a visão de um bairro que ainda não havíamos visto na literatura gaúcha. Se pegarmos o Marrom e Amarelo, do Paulo Scott, há o Partenon e mais uma conjunção de cenários originais. Já o livro do Luiz Maurício Azevedo, A Manipulação das Ostras, trata de Pelotas. Então, há uma série de novos pontos de vista. E também são autores que não vêm de oficinas literárias. Eu mesmo não fiz oficina. Isso não é pior nem melhor, mas demonstra formas diferentes de se formar um escritor. A diversidade é a melhor forma de manter a qualidade literária, em qualquer lugar.

Atualmente, há também uma cena forte slam poetry, que mistura poesia com a linguagem do hip-hop. Esse movimento te cativa?

Sim. Como não fui um leitor na minha juventude, acabei indo para o lado do rap e do hip-hop. Fiz parte até de um grupo, o Magma. Ainda bem que o grupo não foi adiante, porque não éramos bons (risos). Gosto do slam por ter um apelo aos jovens no contato com a palavra. A performance também remonta à ideia de uma africanidade perdida. É a poesia passando pelo corpo. A minha única ressalva é, talvez, o excesso de realidade em alguns momentos. A literatura não aguenta muita realidade. Quando tenho muitos textos próximos da realidade, eles caem em falta de qualidade.

Também podem se tornar repetitivos.

Exatamente. Isso serve não só para o slam, mas para qualquer tipo de texto que se coloca em uma posição de dizer a verdade. Mas não estou dizendo que o slam não tem qualidade. Tem muita coisa boa sendo feita, como os Poetas Vivos, por exemplo, que conseguem equilibrar discurso político e estético.

Como pretende marcar sua passagem como patrono?

Hoje fiz fotos na Praça da Alfândega. Caminhar ali sem a estrutura da feira é uma coisa muito diferente. Não é uma tristeza nem um vazio, mas é estranho. Justamente quando me tornei patrono não haverá esse espaço físico. Mas também penso que há outro ganho dessa Feira online, que é o de chegar a mais pessoas. Minha expectativa é interagir online e prestigiar esses momentos de leitura, reflexão e indicação de leitura. O mais bonito dessa edição da Feira é que ela saiu da Praça e vai entrar nas nossas casas.

ALEXANDRE LUCCHESE

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