quarta-feira, 21 de outubro de 2020


21 DE OUTUBRO DE 2020
OPINIÃO DA RBS

Vacina contra a ignorância

Beira o absurdo a controvérsia que voltou a ganhar corpo no Brasil nos últimos dias sobre a obrigatoriedade da vacinação contra o novo coronavírus assim que um imunizante seguro e eficaz estiver à disposição da população. Os contrários à compulsoriedade vêm evocando o argumento da liberdade individual, mas se esquecem de que a vacina é uma questão de saúde pública, de interesse de toda a coletividade e, portanto, deve sobrepor-se a crenças ou posições pessoais de qualquer natureza. Imaginava-se que uma possível imposição nem sequer seria necessária. Bastaria o bom senso, mas este é um artigo que vez por outra está em falta no Brasil atual.

Especialistas alertam que, se a vacinação não ocorrer em larga escala, o vírus continuará encontrando espaço para circular, infectar e fazer vítimas fatais. Portanto, alguém que opta por rejeitar a proteção pode disseminar o patógeno e a doença para seus concidadãos. Negar a vacina transcende questões legais: é uma posição de egoísmo e irresponsabilidade e não uma irresignação contra um ato de autoritarismo. Da mesma forma, muitos que porventura se negarem a receber a sua dose podem adoecer e acabar se socorrendo no SUS, serviço pago pelos impostos de todos os brasileiros.

A liberdade é um valor inquestionável, mas ela só é possível graças aos limites impostos pela convivência em sociedade. Não há defesa do indivíduo que justifique, por exemplo, autorização para conduzir um veículo embriagado, justamente pelos riscos a si e a terceiros. A vida comunitária exige liberdade com consciência.

É lamentável, nessa discussão estéril, a postura do presidente Jair Bolsonaro. Ao ressaltar que a vacina não será obrigatória, encoraja muitos de seus seguidores a trilhar esse caminho obtuso. Joga contra o sucesso do futuro programa de imunização. O comportamento de Bolsonaro, aliás, é contraditório. Enquanto reiteradamente defende um medicamento sem eficácia comprovada, fechando os olhos para todas as evidências, desestimula a vacinação com um produto que, quando estiver à disposição, terá passado pelo escrutínio da ciência. É tão lastimável quanto politizar a vacina de acordo com o país de origem da substância ou com as parcerias estabelecidas por adversários políticos. Pode até recuperar alguns pontos perdidos com o bolsonarismo mais radical pelo casamento com o centrão e por outras promessas quebradas, mas colide frontalmente com os interesses da saúde pública e da esmagadora maioria dos brasileiros. Tem de ser lembrado ainda que leva a assinatura do presidente a Lei 13.979/2020, de fevereiro, que prevê a possibilidade de vacinação compulsória. Talvez Bolsonaro nem a tenha lido com atenção. Afinal, a legislação, como já reclamou o presidente em relação a livros didáticos, "tem muita coisa escrita".

O Brasil conta com um exitoso programa de vacinas e várias, para crianças e adolescentes, são obrigatórias, sob pena de dificuldades para serem matriculados em creches e instituições de ensino ou então para a família receber benefícios sociais do governo. Mas a cobertura vem caindo nos últimos anos, levando ao risco do reaparecimento de doenças erradicadas. Vários países, preocupados com a saúde pública, também obrigam que o viajante tenha certas vacinas para o ingresso em seu território.

Convicções religiosas, ideológicas e pendores para crer em teorias conspiratórias bizarras, como os adeptos do movimento antivacina, não devem ameaçar a futura campanha de vacinação, pela qual o mundo inteiro aguarda de forma ansiosa. A desinformação já fez o Brasil ter, no início do século passado, um episódio conhecido como a Revolta da Vacina, quando boa parte da população do Rio de Janeiro rejeitou a imunização obrigatória contra a varíola. Era de se esperar que, em pleno 2020, passagens como essa ficassem de vez restritas aos livros de História. Mas nota-se que a vacina contra a ignorância também não vem conseguindo uma cobertura satisfatória.

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