sábado, 24 de outubro de 2020


24 DE OUTUBRO DE 2020

MARCELO RECH

O purgatório de Mourão

No início dos anos 1970, o livro Amazônia: Paraíso e Inferno, escrito por Renato Ignácio da Silva em cooperação com a Força Aérea Brasileira (FAB), ajudou a educar gerações de militares e civis para a sobrevivência na selva. A Amazônia, ensinava o escritor, pode ser ao mesmo tempo "bela e cruel". Sobreviventes de acidentes aéreos, lembrava ele, podiam extrair da floresta alimento e água, se soubessem como fazê-lo, mas também encontrar ali sua perdição.

Meio século depois, em um rasgo de raposice política, o presidente Jair Bolsonaro desvencilhou-se da incômoda sombra de um vice-presidente repleto de energia, ideias e prestígio e entregou a Hamilton Mourão o seu paraíso e inferno. O general sorridente que tinha tempo e conhecimento de sobra, falava de tudo e acalmava os mercados corrigindo as mancadas do chefe, agora atravessa os dias a se esquivar do tiroteio interno e externo sobre os incêndios e o desmatamento na Amazônia.

Ao assumir a coordenação do Conselho Nacional da Amazônia em abril passado, o vice articulado em diferentes idiomas e habituado a palmilhar de trilhas na selva a salões de palácios passou de flecha para alvo. Como descobriram muitos inquilinos do Planalto, um vice em estado de ócio é fonte constante de conspirações palacianas. Pois agora Mourão tem os cinco sentidos abduzidos pela urgente e espinhosa questão amazônica, escreve artigos e dá entrevistas na defesa, poupando o presidente de se explicar, dentro e fora do país, pelo crescimento dos focos de incêndio - 68 mil até meados de setembro, 13% a mais do que em 2019. Militar não escolhe missão, e a do vice converteu-se numa fogueira ardente no Planalto.

Desconfortável pela desenvoltura do general-vice, o capitão-presidente vem dando sinais de que terá outro companheiro na chapa de 2022. Se Mourão seguisse livre e desimpedido, ou viesse a ter sucesso em tornar a Amazônia um aplaudido case mundial de gestão ambiental, ele se credenciaria a concorrer contra Bolsonaro. Como até as pedras da Praça dos Três Poderes reconhecem a inapetência do presidente para a defesa de índios e árvores, quando não para sabotá-la, as chances de Mourão conhecer o paraíso têm se esfumaçado a cada nova estatística sobre o desmatamento. A Amazônia, tão bela e cruel, é agora sua antessala do inferno.

MARCELO RECH

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