segunda-feira, 19 de outubro de 2020


19 DE OUTUBRO DE 2020
CLÁUDIA LAITANO

A coroa vazia

O que faz de um soberano um grande líder? Ou um tirano? Ou um aleijado moral com indisfarçável vocação para a tirania?

Ninguém foi mais a fundo na investigação do caráter de governantes do que William Shakespeare nas peças históricas em que retrata momentos de honra e infâmia da monarquia inglesa. Sim, eu sei, essas não costumam ser suas peças mais amadas e encenadas. Você provavelmente já viu Hamlet, Macbeth, Otelo e Rei Lear, no teatro e no cinema, de todos os jeitos possíveis. Talvez tenha até lido alguma das versões para o português assinadas por um dos quatro integrantes da excepcional safra de tradutores de Shakespeare que floresceu no Rio Grande do Sul nos últimos tempos (Beatriz Viégas-Faria, Elvio Funck, Lawrence Flores Pereira e José Francisco Botelho). As chamadas peças históricas são menos populares, talvez mais exigentes - e por isso mesmo injustamente menos encenadas e lidas.

Não faz ideia de quem gritou, em meio a uma batalha, "um cavalo, um cavalo, meu reino por um cavalo"? Não entende por que o crítico Harold Bloom costumava dizer que Falstaff era seu personagem shakespeariano favorito? Fica confuso com tantos Henriques, Eduardos e Ricardos herdando e perdendo a coroa? Seus problemas acabaram. Estão disponíveis no streaming da Amazon Prime Video as duas temporadas da excepcional série britânica The Hollow Crown (algo como "a coroa vazia"), produzida pela BBC com supervisão do diretor Sam Mendes.

A primeira temporada (2012) inclui as peças Ricardo II, Henrique IV e Henrique V. A segunda (2016), Henrique VI e Ricardo III. O elenco é formado por veteranos (Jeremy Irons, Patrick Stewart, John Hurt e Geraldine Chaplin, entre outros) e jovens talentos (Benedict Cumberbatch, Tom Hiddleston). Na opinião de muita gente boa (e minha também), é a melhor adaptação de Shakespeare para a televisão dos últimos 400 anos.

Reis do século 15 ainda hoje podem nos ensinar muito sobre a política, a vida - e todo o resto. Henrique V, por exemplo, deixou de ser um garoto mimado para tornar-se o melhor líder com o qual uma nação poderia contar durante uma guerra. Não, não é impossível que um homem medíocre honre o posto que ocupa tornando-se melhor do que é quando ascende ao poder. O que temos visto no Brasil nos últimos meses, infelizmente, é mais ou menos o contrário disso: o que era indigno tornou-se repugnante.

A coroa nunca esteve tão oca.

CLÁUDIA LAITANO

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